Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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06 Janeiro 2025

A crítica, quer profissional quer amadora, tende a concordar com a opinião de que O Deus da Floresta (The God in the Woods), de Liz Moore, é um livro arrebatador, pois não se consegue parar de ler. E de facto, foi uma das minhas leituras mais agradáveis de 2024, só terminada nos primeiros dias do novo ano (sendo assim, a que lista de melhores do ano pertencerá?...). Insere-se inequivocamente no género policial, no sentido em que há um suposto crime (na prática, um desaparecimento com suspeita de homicídio), ocorrido nas primeiras páginas do livro, que replica outro desaparecimento ocorrido uma década antes, nas mesmas circunstâncias, com a mesma família.

Com uma dimensão invulgar para este tipo de livros - mais de 500 páginas na edição portuguesa da Asa, tradução repartida entre Ana Falcão Bastos e Cláudia Brito -, é marcado por um estilo simples (sem floreados linguísticos, nem situações abstractas, e um[a] narrador[a] relativamente neutro[a]), embora assente fortemente na técnica do flashback, bem como do uso de diferentes pontos de vista (alternamos entre as personagens de capítulo em capítulo), para ir empurrando o enredo.

É, garantidamente, a tensão criada por esta multiplicidade de vozes (mas não diversidade - a voz narrativa sobrepõe-se a todas, harmonizando posturas, dialecto e timbres) que serve de base ao ímpeto narrativo - aliado ao uso de capítulos curtos, interrompidos num momento inconclusivo, como quem está à beira de um fim de caminho, e tendo chegado até aqui, é obrigado a saltar.

Vê-se que a autora tem consciência desta complexidade, pois intitula cada capítulo com o nome do personagem que o protagoniza, e também com a indicação da cronologia completa (ou seja, de todos os momentos temporais abordados pela história). A técnica pode não resultar como se pretende para todos os leitores - não nos parece, contudo, que o livro sobreviva sem ela, e felizmente a autora, ou quem a assessorou literariamente, teve consciência disso.

No final de contas, desvendado o mistério (um desfecho que alguns apontaram como insatisfatório para a expectativa criada, e que parcialmente é também a nossa sensação), o romance, como tantos outros deste género, vai afundar-se na estante, tendo cumprido a sua função. É o grande problema do género policial, a de não criar por norma obras memoráveis, e que só poucos autores, ao longo da História, conseguiram ultrapassar - pela subversão do expectável, pelo protagonista ou simplesmente, em certos livros, pela situação narrativa em análise. Mas sobre essa problemática, havemos de falar noutra ocasião.

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19 Outubro 2024

É quase uma obrigação explicar à partida que Cinder se trata de uma interpretação "moderna" da conhecida história da Gata Borralheira (Cinderela noutras paragens). A autora, Marissa Meyer, não só admite abertamente a inspiração como a usa como força vital da narrativa, enchendo-a de piscadelas de olho (há príncipes e reis, há rainhas más, há sapatinhos - ou um pé inteiro, neste caso - que representam a legitimidade). Mas não se fica pelo óbvio, e é neste ponto que o "moderna" se apresenta, com aspas e tudo.

Cinder é orfã, maltratada pela mãe de acolhimento que serve também como sua dona... porque Cinder é ciborgue. Algures no seu passado, e ligado com a perda dos pais, Cinder foi vitima de um acidente aparatoso que lhe destruiu parte do corpo, e para a salvarem, os médicos implantaram-lhe substitutos cibernéticos. Este procedimento médico milagroso aparentemente tornou-se anátema neste mundo, retirando o estatuto de pessoa jurídica autónoma a todos os transformados. Uma injustiça sistémica que dialoga com as preocupações actuais e contribuem para que a resistência individual de Cinder seja também contra o sistema.

A possível leitura política é distraída pelo necessário conflito que opõe a Terra à Lua, cujos habitantes vivem em colónias artificiais sob a ditadura de uma rainha ambiciosa. Apesar de mais populosa e cheia de recursos, a Terra está contudo em desvantagem, pois os lunares adquiriram geneticamente uma forma de controlo mental sobre os outros. Além disso, a Terra está assolada por uma peste imparável, à qual os lunares estão estranhamente imunes. Assim que entra em cena, Cinder nem sequer tem tempo para um monólogo interior, pois o romance atira-a de imediato no turbilhão do enredo, atacando-lhe a irmã preferida com a doença e revirando-lhe a existência, desagradável mas estável, e colocando-a no caminho de personagens que vão desconfiar da sua verdadeira origem.

O livro é muito divertido e movimentado, embora peque por ser o primeiro de quatro, pois queremos continuar a seguir o rumo de Cinder. Recomenda-se sem reservas, e aguardamos ansiosamente pelos próximos volumes da Kathartika.

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