Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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23 Setembro 2010

Sic Transit Gloria Mundi. Ou: passados vinte anos. Vinte anos. Que número tão redondo e insolente. E passou-se em Setembro, o mais arrogante dos meses. Ali, ao lado da seguradora (Bonança? Império? Foi antes do Tempo das Fusões, essa mítica era da qual pouco de fala nas obras de fantasia). Um lançamento discreto, mas com tantos autores que se poderia hoje comparar com aqueles concursos de vanity press que publicam os 1000 melhores contos de entre os 1001 participantes. Aqui também havia vanity, e em fartura, mas creio que se pode dizer saudável e merecida - havia, afinal, um critério de selecção que procurava alguma excelência literária, e concordando-se ou não com ele, nem o crivo era baixo nem todos o passavam.

Como as mencionadas iniciativas, a distribuição foi reduzida, não criou qualquer impacto, ninguém procura o livro em alfarrabistas, não aparece nos saldos das Feiras do Livro, e rapidamente desapareceu de memória. Ao contrário delas, ajudou a cimentar um espírito de comunidade, que tanto mais forte era quanto escassas e inesperadas as oportunidades de convivio. Se as ferramentas sociais da internet nos trouxeram o diálogo e a proximidade, também nos negaram o silêncio e a ausência - factores indispensáveis para podermos compenetrar-nos do que realmente tem valor na nossa vida.

O livro em questão chamava-se Antologia DN Jovem. Um livro gordo, de capa dura, da Editorial Notícias, que recolhia uma selecção generosa das contribuições do suplemento do Diário de Notícias ao longo de quase dez anos (o suplemento teve início de 1983). O organizador, Manuel Dias, também mentor da iniciativa, teria consciência que só os livros são eternos - quem mais consutará as edições originais do matutino em que saiam os nossos textos? Quis fazer dali uma obra de testemunho, e conseguiu. O livro tem qualidade, bom papel, bem organizado, paginado e impresso a preceito. Revisto decentemente.

Tendo iniciado a colaboração meros dois anos antes, entrei quase de fininho, e, devo dizê-lo, não com um dos textos que mais aprecie - estes viriam depois, a par da publicação do Futuro à Janela e da GalxMente. O Manuel Dias considerou que eu devia ser representado pela minha Ficção Científica, uma vez que isso me distinguia. Incluiu o conto «As Aventuras de Leia e Herbi no Desumano Mundo dos Humanos». Que não era um título da minha lavra. Que jamais seria um título de que me orgulhasse. A minha submissão inicial tinha a designação, pensava eu, mais poética de «As Águas Amargas do Desespero» (eis o angst juvenil ali em toda a sua pujança), uma peça em três actos sobre a injustiça de um pogrom anti-robôs. Era demasiado grande para o suplemento, e o Manuel Dias, tendo-o apreciado, preferiu retirar o primeiro acto, o mais fraco, acrescentar uma introdução justificativa e de enquadramento, e manter o segundo e terceiro actos inalterados. Numa correcta atitude de editor, alterou o título, pois já não se tratava da obra inicialmente submetida. Infelizmente não me perguntou a opinião, mas na verdade não faz mal, nunca me importei verdadeiramente. Pelo contrário. Conhecia os queixumes exasperados dos autores estrangeiros sobre os editores que lhes mudavam titulos e alteravam passagens - exemplo do Horace Gold. Ao passar pela mesma situação, ainda que irrisória, ao ter uma história semelhante para contar, ajudou a sentir-me autor.

Acompanham-me muitos outros colegas, neste livro, e todos melhores do que eu. Alguns que permaneceram (Joaquim Cardoso Dias, Venda, Agualusa, Direitinho), outros que andam um pouco calados. Merecem um comentário mais profundo do que sou capaz de fazer nesta nota apressada.

De destacar, no entanto, a outra colaboração de Ficção Científica, que só vim a descobrir neste livro e a encontrar nessa data do lançamento: o Ricardo Loureiro. Hoje em dia ajuda a dinamizar os fóruns sobre o género e a divulgar bons livros. Também já foi editor do Hiperdrivezine e da Nova, revistas literárias nas quais se estreou, entre outros, o Telmo Marçal, recentemente publicado em livro. Mas então era o meu compadre na ficção. Nos tempos em que era difícil e inglório escrever neste género, e as editoras, ao contrário de hoje, nos franziam o nariz ante o fedor de tal categoria.

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07 Setembro 2010

Pode Não Ser Crime, A Ingenuidade, mas por ela paga-se uma pena severa, que tanto mais severa se torna quanto mais pessoal e irrisório o acto (no sentido em que actos ingénuos causadores de calamidades ocupam de tal modo as vítimas na sua resolução que o perpretador acaba ofuscado da lembrança colectiva). No caso da literatura, não há maior ingenuidade do que contrariar as expectativas dos leitores para agradar aos editores. E deste acto - bem como de muitos outros - fui, e ainda continuarei a ser, por vezes culpado.

Uma das ocasiões de maior ingenuidade terá sido sem dúvida a participação nas Linhas Cruzadas, antologia da PT Telecom. Eis um livro de grande divulgação, com nomes sonantes, com um orçamento de marketing sólido a suportá-lo e um convite feito pelos organizadores (creio que era o Rui Zink). Condições: texto inéditos, que podiam ser de ficção científica. E um limite fatal: não mais de 800 palavras. Garantiram-me: absoluta e intempestivamente não mais que 800 palavras.

O ingénuo do autor não tinha contos de 800 palavras inéditos nem ideias para tal. Debatia-se com uma história sobre uma suposta invasão de um mundo alternativo, que podia não passar de uma doença - dez mil palavras no menos. Além de estar a braços com importantes alterações na sua vida (mudar de casa, desafios profissionais, a constatação que a Simetria, alvo de tanto esforço e anseios, se tornara num projecto zombie, etc, etc), banais e pouco originais, mas que lhe deixaram pouco tempo para pensar em alternativas. Não foi de modas: condensar uma mini-visão do futuro num poema.

Entendam o enquadramento não como desculpa mas memória. Como disse no último post, não interessam as circunstâncias do nascimento do texto, mas apenas a sua própria condição de ser. O poema, na opinião de muitos, ficou aquém do que poderia ter sido, ainda que não pretenda ser mais do que um conjunto de quadras, simples, directas, não sofisticadas, infantis. Algo que destoava - negativamente - de uma antologia daquele calibre.

De tempos a tempos alguém desenterra o morto, calhando ao Miguel a incumbência mais recente e, graças a ele, a pergunta que me levou a lembrar-me e escrever sobre o assunto. Agradeço-lhe pela atenção e peço desculpa pela frustração da expectativa, a ele e aos demais leitores. Devia ter ignorado os limites dos editores. Devia ter enviado o conto que realmente me apetecia. Eis uma lição aprendida.

Ainda assim... ainda assim, o poema tem um charme infantil que me continua a cativar. Talvez não o início mas sem dúvida o embalo. Será uma questão de ingenuidade permanente, será a história épica escondida no interior, ou ainda, uma musicalidade que a página não consegue reproduzir. Embora precise de uma boa revisão da métrica.

E pensar que este sacaninha me deu um trabalhão a compor...

Sonhos de Planetas e Estrelas

À distância da eternidade,
a Terra é um imenso formigueiro
De espécies convencidas de imortalidade,
mas que duram apenas um dia inteiro

De todas elas, a mais peculiar
será a bípede de aspecto simióide
Que antecedeu a artrópode polar
e reinou após a titânia sauróide

Pouco sabemos a seu respeito,
e tudo o que temos é curiosidade
De determinar o defeito
que a ceifou em tenra idade

Tinha raciocínio de construtora
e capacidades de manipulação
Mas natureza de predadora,
talvez seja essa a razão

De ter usado o planeta sem mente,
rumo a um destino fatal
Embora fosse a primeira inteligente,
enquanto espécie não era nada de especial

Uma civilização comunica pelos desperdícios,
uma espécie de organismos
Desta restam apenas indícios
de pedra, plástico e mecanismos

Que outrora abundaram em demasia,
sintoma de caos e desperdício
Fizeram da descoberta, teimosia,
e da tecnologia, vício

Sem controlar as hormonas em ebulição,
perderam-se em actos de amor e violência
Prova de que a animais de criação
não se concede o dom da inteligência

Em breve faria Gaia a rasura
que apagaria tão fracassada iniciativa
Esperaria milénios para a cura
e depois nova tentativa

Desaparecida e enterrada se encontra,
a pequena espécia valente
Que tentou cometer a afronta
de espalhar por outros mundos a semente

Pois, também na ambição pioneira,
havia sonhos de planetas e estrelas
Mas como lição derradeira
nem os tiveram a eles nem a elas

O erro não voltará a ser cometido,
pertence agora só ao passado
E a espécie, cujo nome foi esquecido,
vive apenas na alma de um sonhador cansado.

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05 Setembro 2010

Erros Meus e Má Fortuna, que sem dúvida sobejaram - pela especial graça das investigações para o Pulp Fiction à Portuguesa -, conduziram-me às folhas de O Isqueiro de Ouro, título com que Dick Haskins, também conhecido por António Andrade Albuquerque, inaugurou a sua actividade literária. A edição original data de 1959, embora a Web afirme que o número representa na realidade 1954, e a Web, como sabemos, nunca se engana. A qual, e não só, também o proclama um sucesso internacional em vintena de países. Se nesta realidade se numa alternativa, não faço ideia. Para tal, espero que o texto se tenha magicamente transformado numa preciosidade noir. Ou que o autor se redima nos romances seguintes. O que duvido, pois também li o Expresso de Berlim, livro bastante recente e que prometia uma boa história. Ficou-se pela promessa e pelos diálogos insalubres (tão pouco plausíveis como, por exemplo, os do Desafio de Aniceto).

Em O Isqueiro, o aparente suicídio de uma rapariga na linha de metro de Londres não convence o intrépido reporter Haskins, que julga tratar-se de assassínio e que tudo faz para o comprovar. Até consegui-lo, prega bofetadas, murros e ameaças em tudo o que é gente, numa demonstração de subtileza jornalística. Diz ao chefe de redacção para publicar parangonas que contradizem a afirmação da polícia e para as quais não tem provas, e espantosamente, o jornal manda a sensatez jurídica às favas e vai em frente. Mulheres caem a seus pés sem que tenha exibido um único prenúncio de carisma ou bom hálito. As deduções científicas recaem no presumível trajecto da bolsa da vítima, que foi encontrada longe do que seria o local de pouso se o suicídio fosse verdadeiro (e claro que os outros passageiros não poderiam ter-lhe dado um pontapé no corre-corre da comoção), e que só Haskins considera como pista relevante, contra toda a equipa de investigação forense da Scotland Yard. Grande homem.

Dirão que os anos 50 eram complicados e que o autor, jovem então, labutava por prazer contra a falta de material, de conhecimento e de experiência, inspirado em más ficções populares. Ninguém diz o contrário. Mas um livro é um livro é um livro. As circunstâncias do seu nascimento não devem ditar a apreciação futura e o tempo de vida, e às vezes é melhor simplesmente enterrá-lo de morte matada.

Mas nem tudo é mau. Dizer que, no final do livro, apeteceu-me escrever um conto em que o protagonista enchia de porrada este personagem Dick Haskins e o metia no devido lugar, não uma mas várias vezes, é, se o quiserem ver pela positiva, uma forma de explicar que o livro não me deixou indiferente.

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