Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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28 Janeiro 2023

Eis a primeira resenha do ano, numa leitura que não despertaria interesse, se não tivesse escutado uma palestra do autor no último festival de FC em Avilés. Obra e criador são dois seres irmanados, mas não realmente gémeos, sendo a primeira fruto de um necessário compromisso entre vontade e capacidade, uma negociação de caminhos, e o segundo moldado por tudo o que se lhe impõe, como a sociedade, a condição humana, a vida. E contudo, ditadores e outros quejandos sempre tenham procurado calar a obra pelo amaldiçoamento de quem a fez, com a habitual justificação de uma pureza do pensamento (técnicas apropriadas entretanto pelas polícias colectivas dos supostos bons costumes, e de quem lhes dá ouvidos e autoridade). Que a associação com ditaduras tenha sido tão imediata revela, talvez, o cancro óbvio que assombra a Utopia descrita em Ceifador. Tradução de uma série juvenil (por moda, dizemos agora jovem-adulto, mas o que é este, realmente, senão um adulto pleno que ainda não se cansou de o ser?) em que os seres humanos vivem para sempre, por obra e graça de uma medicina milagrosa que tudo repara (cair de um arranha-céus é tão irrelevante quanto fazer um golpe no dedo, e até se desperta com memórias intactas!), arriscando, portanto, esgotar os recursos da Terra e encher o planeta de membros desta espécie teimosa. A solução para o excesso populacional? Ora, é tornar as pessoas voluntárias à força no jogo da extinção pessoal - por outras, palavras, matá-las. Entra em cena uma casta de assassinos que dita o fim dessa medicina milagrosa capaz de recuperar o corpo, nas vítimas por si escolhidas. Agindo sob um sistema de quotas, esta premissa faria as delícias de qualquer assassino em série - ou não, talvez a obrigação transformasse um hobby em trabalho, tirando-lhe o gosto... Os praticantes dessa Ordem chamam-se Ceifadores, e a prática da ceifa, uma colheita - opções de tradução adequadas e que ficam na memória. A História atribuiu-lhes imunidade praticamente total, pois matar ceifadores é punível com uma colheita imediata, a não ser que estes se suicidem. Mas até isto acontecer, são obrigados a ir matando sem piedade.

O que dizer desta premissa? Para começar, é uma interpretação curiosa, e bastante cínica, dos futurismos juvenis que se multiplicaram nas últimas décadas, apresentando-nos o que LeGuin chamaria de utopia ambígua: a perfeição com odor fétido. É um futuro particularmente sádico, e possivelmente traumatizante, pois a morte de um amigo ou familiar, se causada por mão humana e escolha deliberada (em vez de ser uma característica inevitável da vida), deixaria marcas na sociedade - aliás, o pavor de quem se cruza com um Ceifador é repetidamente descrito. Estamos perante um custo obrigatório sem contrapartida imediata, apenas uma abstracta promessa de eficiência, tal como o pagamento de um imposto... sendo o causador da morte conhecido, caminhando impune e em liberdade, e capaz de vingança se contrariado. Um preço demasiado alto - parece-me - para a aceitação de uma existência imortal, criando elites que a negam. É de admirar que não se ergam vozes dissidentes (ou ficou a revolta relegada para os próximos episódios?).

O enredo centra-se na educação de dois jovens escolhidos para aprenderem estas artes, uma vez que se ingressa nas fileiras por convite e mérito; ambos terão de sobreviver às provações daquela vida e engolirem a mentira - que colher é um acto humano e justo - que sustenta a sociedade. Eis a consequência óbvia: a actividade atrairia psicopatas, que aqui se retratam como sendo os Ceifeiros que colhem vidas alheias com prazer e para ganhar poder e fortuna - e o fazem também de forma colectiva, em espaços públicos, como forma de espectáculo. Perversamente, o livro faz-nos crer que este acto é menos humano que a eliminação do indivíduo isolado, como se esta escolha não se entenda mais pessoal. E tanto mais perverso é, que as mortes acontecem de forma brutal, com dano físico, em vez da pacífica eutanásia adoptada em Soylent Green.

É impossível concluir a leitura sem sentir um gosto amargo, não obstante a simplicidade da escrita que faz passar páginas com facilidade. Shusterman sabe o que faz, sendo este o primeiro de uma trilogia. Numa era em que tanto se fala de saúde mental, esperemos que os habitantes deste mundo encontrem paz de espírito.

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16 Janeiro 2023

Após o final da gravação, em curta mas amena cavaqueira, lá acabei por perguntar ao Brian Jay Jones se ele teria omitido alguma passagem controversa da vida do Lucas, uma vez que o sujeito em causa era tão «bem comportadinho». Aparentemente, o tema mais vincado da personalidade em questão é precisamente o controlo, a necessidade de estar ao leme, o que, para um autor, não é minimamente polémico, mas a norma. Também aqui a necessidade, para o biógrafo, de manter o interesse, quer o da sua pesquisa quer o da leitura alheia. O primeiro filme da Guerra das Estrelas - ou Guerras Estelares, se quisermos traduzir à letra - teve um desenvolvimento caótico, mas se o resultado acabou por ser revolucionário foi sem dúvida também pela conjugação dos talentos de outros, um dos quais a própria esposa, Marcia, experiente em montar os filmes de Scorcese e, segundo o livro, tendo feito vários contributos essenciais (a morte de Obi-Wan, o conflito final, a navegação pela trincheira da Estrela da Morte) que deliciaram plateias mundiais no ano impossivelmente distante de 1978 (e que merecia ser biografada por mérito próprio). Já disse e repito: o primeiro episódio é um grande filme com uma péssima história - e ainda assim, toca uma série de acordes emocionais básicos que deixaria o seu charme num rapaz de oito anos. Por muito que agora saiba relativizar o fenómeno, a verdade é que cada novo filme da saga (e só deixei passar o Império, que vi depois do Regresso, e não fiquei impressionado) definia a vanguarda dos efeitos especiais. A obra em questão apresenta Lucas visto de fora, uma vez que o próprio negou acesso directo ao biógrafo e, portanto, tornou o projecto «não autorizado», com o seu quê de intimidatório, pois aborda um multimilionário em vida que tem um particular gosto por controlar tudo (este comentário estará na entrevista). No entanto, é uma pena que não se tenha podido abrir a cortina, e entender as influências principais do primeiro filme (há quem alegue um decalque de Kurosawa, o que, por mim, me parece uma influência excelente para uma space opera). De entre as curiosidades reveladas (que Harrison Ford podia ter seguido uma carreira de carpinteiro, por exemplo), espantou-me descobrir que o principal segredo do enredo - o Darth Vader ser pai do Luke - não constava das ideias iniciais, uma vez que, para mim, e para o meu pai, que me levou à estreia, a relação adivinhava-se à distância, por ser tão óbvia naquele tipo de filmes (sim, percebi-o naquela idade). O livro é agradável de ler, e quando entra nos capítulos dedicados aos filmes, ganha ritmo - o próprio Brian admitiu que estruturou o texto com truques de ficção, para manter o interesse. E para todos os efeitos, é um fenómeno do nosso tempo.

Capa do livro

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