15 Janeiro 2022
Merecidíssimo destaque ao artigo «Um estudo morfológico da Utopia n’O Balão aos Habitantes da Lua» (Porto: FLUP, 2011) de Maria Luísa Malato, apresentado no colóquio Por Prisão o Infinito. Tendo por orientação o tema da prisão e das liberdades, subjacente ao evento académico, e por mote a análise do texto oitocentista de José Daniel Rodrigues da Costa referido no título, realiza um percurso veloz mas exaustivo sobre as características1 e os anseios2 do tema utópico, bem como as estratégias narrativas de legitimação comumente encontradas pelos autores daquilo que são, frequentemente, visões muito pessoais e, logo, frágeis, tendenciosas, fáceis de atacar e derrubar.Mas a par da análise crítica, encontramos no ensaio um agradável conjunto de (para nós) pequenos prazeres, tais como a refutação da hipótese, infelizmente pouco contestada, de não existirem utopias portuguesas - reconhecendo-se, contudo, que esta percepção possa derivar pela forma como se traça a fronteira dos cânones. Romper as fronteiras implica conhecer, e em jeito de evidência irrefutável o artigo sublinha o trabalho desenvolvido pelos institutos portugueses para resgatar as nossas utopias do esquecimento3. Num aparte pessoal, sabendo nós que a FC (filha bastada das utopias) herdou, e continua a herdar, as suas principais orientações de culturas e literaturas alheias às nossas, tendo encontrado pouca inspiração nas obras dos congéneres lusitanos, fica-nos a dúvida, ou talvez seja mais uma curiosidade, se conseguiremos enquadrar todos os textos utópicos redescobertos numa linha de continuidade temática... ou se padecerão do mesmo mal.
Para terminar, não posso deixar de citar esta pertinente conclusão sobre a natureza, quer das utopias quer das prisões que representam: «Talvez se possa então concluir o que os leitores frequentes de utopias intuem. Que toda a prisão gera desejos incontroláveis de infinito. E que toda a promessa de infinito é uma passagem para possíveis formas de prisão. Para vivermos numa prisão, bastará talvez, no limite, habituarmo-nos à ideia de que dela descobrimos uma evasão perfeita». A ler.
1A Utopia, aliás, raramente usa o nome da Utopia: aparece frequentemente como um Relato de viagem, uma Crónica, uma Notícia, uma Descrição, um Sonho, uma Carta, um Diálogo, uma Constituição. Um texto estatutário. Ou um “Poema heróicómico em um só canto”. Formas de disfarçar a utopia. Porque a Retórica da Utopia, como sucede frequentemente com a Retórica, só é eficaz se passar despercebida. Ou para segundo plano.
2 (...) desconfiemos pois dos nomes. As prisões, nem sempre se chamam “prisões”: os que as supõem espaços únicos, os que nelas nascem ou doutra coisa não guardam memória, chamam-lhes “lares”. Só quem conhece, ou quer, outra coisa, sabe o que é uma prisão. (...) A Utopia é um género onde se evoca frequentemente Ícaro, estouvado na sua ousadia, e o seu contraponto paterno, o prudente Dédalo, arquitecto preso no labirinto que ele próprio construiu.
3 O trabalho desenvolvido durante mais de seis anos pelo projecto Utopias Literárias, sedeado no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, veio afinal mostrar que existem Utopias Portuguesas. Prova-o a Biblioteca e a Nova Biblioteca de Textos Utópicos portugueses entretanto editada. Refira-se a novidade de Utopias de Cordel e textos afins, da antologia de textos utópicos de Vasco José de Aguiar, utopista português do século XIX, ambas editadas por Jorge Bastos da Silva, de Irmânia, de Ângelo Jorge, de Felizes os que então viverem, de Joaquim Maria da Silva, da adaptação portuguesa d’Oque há-de ser o mundo no ano três mil, pacientemente comparada por Fátima Vieira, ou dos recentes Novelos de Sintra, de Jorge Telles de Menezes, para não citarmos os muitos estudos críticos sobre os muito ignorados utopistas portugueses…