25 Julho 2021
Zot! é uma banda desenhada sobre super-heróis que, a certo ponto, desiste de falar sobre super-heróis e prefere focar-se nos dramas humanos de jovens de liceu, em finais dos anos 1980, que se encontram embrenhados nas suas lutas pessoais contra os monstros mundanos da vida, obviamente tão ou mais terríveis que os piores vilões das histórias. É uma inesperada e cativante reviravolta que, infelizmente, há que procurar nas produções independentes, pois escasseia nas DC e Marvel e outras que tais à nossa volta.No entanto, e para sermos justos, esta BD nunca chega a mergulhar profundamente naquele género capaz de despertar paixões de intensidade futebolística - o único verdadeiro super-herói é um adolescente de nome Zacarias, que não tem super-poderes mas umas magníficas botas que o fazem voar, e uma confiança própria da idade enquanto luta contra os maus, intensificada pela realidade alternativo em que nasceu: uma semi-utopia tecnológica povoada de vilões, que, embora extraordinários e assustadores, no final, acabam sempre derrotados. Depois, preso na nossa Terra, anseia por praticar o Bem, mas, vulnerável a agressões físicas e balas, rapidamente percebe as limitações da sua falta de extra-capacidades.
Mantendo os pés na Terra, McCloud apresenta-nos Jenny, uma adolescente do nosso mundo que sente uma paixão ambígua por este rapaz. Será o olhar dela, o que seguimos, serão as suas opiniões e sentimentos que discretamente dão cor às pranchas de um opressivo preto-e-branco. McCloud aproveita técnicas do mangá, então pouco divulgadadas no mercado norte-americano, e mistura-as com uma precisão de traço e enquadramento que não destoariam num manual de geometria. O compêndio publicado em 2006 reune as histórias das edições individuais entre 1987 e 1991, a partir do número 11, ignorando a fase inicial a cores, que por enquanto apenas se adquire nos alfarrabistas. É assim uma história que começa a meio, ainda que rapidamente se apanhe o fio à meada da narrativa, e que inicialmente brinca connosco e com a possibilidade de Zot não passar da fantasia de uma jovem desgostosa das imperfeições do mundo. É também durante este período que McCloud aproveita para subverter o seu próprio estilo, e dar-nos uma lição de como, recorrendo à expressividade visual do meio, a perspetiva do Outro (neste caso, do vilão) pode ser uma total deturpação da nossa experiência.
No final, são os capítulos que abordam os tais dramas humanos que conferem à obra uma incursão singular pelos problemas da adolescência e de como sobrevivermos e adaptarmo-nos aos desafios (muitos deles, injustos) lançados por este mundo - lidar com a sexualidade (a aceite e a socialmente não aceite), a identidade, a família disfuncional, a necessidade de pertencer. A segunda fase desta série é intensamente realista, ainda mais pautada por um traço rigoroso e sem devaneios oníricos - opção que, a meu ver, se torna por vezes sufocante e avassaladora, sem pausas para respirar. Teria sido interessante utilizar este realismo perfeito no mundo de sonho, e alguma indefinição nos traços naquele que é o nosso, de modo a aligeirar a mensagem. Por outro lado, há mensagens que não se prestam a ligeirezas... e McCloud mostra-se indubitavelmente forte nos momentos silenciosos, na sequência de vinhetas vazia de palavras mas que muito dizem.
Não existe edição portugusa, que eu saiba. Quem quiser, terá de encomendar uma das edições estrangeiras. Ou dirigir-se ao sítio Web do autor, que uma década e picos após o último número de Zot! desenhou mais um conjunto de episódios e colocou-os gratuitamente online.