Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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06 Dezembro 2020

Neste dia, prendas se oferecem. E melhor prenda não há, que Borges sintético mas infito.

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29 Novembro 2020

A cronologia não ajuda a defender a teoria fácil de que a evolução de um escritor segue os contornos e ritmos da sua vida, e que as ficções dadas à luz a cada ano serão portas de entrada, ou portinholas de acesso, para as suas cismas circunstanciais. Seria naturalmente mais simples considerar «Death of a Spaceman» (curiosamente, uma das poucas obras de Walter Miller traduzidas para português) como o canto de cisne de um autor consagrado se surgisse, qual singela estrela cadente, no final de vida deste, ou durante o período de transformação radical do género a que se dedicou e em que poucos anos firmou nome, antes de se apagar bruscamente. Mas 1954, o ano da publicação do conto na Amazing Stories, distava ainda meio século, para ele, do oblívio carnal a que todos estamos sujeitos, e vários anos da New Wave que supostamente alienaria autores e leitores incumbentes. É bem possível, por outro lado, que em Miller se reflectisse já o cansaço, ou o silêncio iminente a que se remeteria em breve, após deixar escassa obra e um rol finito de preocupações temáticas - ele, que pode ter sentido O Cântico para Leibowitz (1959) como a sua grande saída de palco, aquele fechar da cortina que muitos consagrados temem reabrir (como gostamos, os críticos, de apropriar-nos da mente alheia de quem escreve!). Contudo, a explicação mais lógica poderá encontrar-se na tessitura do próprio género, duas décadas distante do rocambolismo ingénuo da pulp fiction, enegrecido pelas experiências da Segunda Guerra e de Trinity, um mundo no qual os autores, regressados heróis, enfrentariam as ameaças mais ignóbeis das hipotecas para pagar, dos matrimónios cansados, dos públicos indiferentes - um género entretanto capaz de admitir narrativas saudosistas e revisionistas, como «The Green Hills of Earth», como se convictas do futuro inevitável que ilustravam ou resignadas ao facto que o resto da sociedade não era capaz de ver tão longe e nitidamente quanto elas. Assim se entenderá uma ficção sobre um espaçonauta em fim de vida, consumido pelo cancro, navegador incansável da rota Terra-Lua até a reforma pôr um fim aos seus dias de glória, mantendo uma postura estoica para a família que orbita à sua volta, fazendo as suas últimas despedidas - excepto do neto Ken que o desilude, quer por se recusar a seguir-lhe as pisadas quer por chegar demasiado tarde naquele dia -, feliz apenas num derradeiro instante em que ouve partir ao longe o cargueiro espacial, sem ele mas sempre consigo. Mas estamos perante um narrador pragmático que recusa dramatismos e encara a situação com a ironia necessária («The dead must humor the mourners, he thought, and the sick must comfort the visitors. It was always so.»), uma pessoa do seu tempo, um homem que fez o seu trabalho e agora vive a sua morte, e na proximidade da morte, está consciente de que tomou as decisões que quis, mesmo que estas não lhe tenham trazido fama nem fortuna nem um legado que lhe sobrevivesse («A man makes his own soul, but it dies with him, unless he can pour it into his kids and his grandchildren before he goes. I lied to myself. Ken's a yellow-belly») - legado que nem soube garantir como um homem o faria («I'm sorry I can't get out of this bed and take a belt to my daughter's backside for making a puny whelp out of Ken»). Paradoxalmente, neste conto encontramos a elegia de si mesmo, e de todo um modo de ser, cujo sabor estranho se tornará intragável com o passar dos anos: a visão de um destino manifesto exclusivo dos homens - como se não fosse também propriedade da outra metade da espécie humana -, de um «fazer» acima do «existir», de noções de dever e sacrifício herdeiras dos mais antigos mitos heroicos com os quais estabelece uma relação filial improvável. É uma ficção sobre soldados para gerações que desconhecem a guerra e por isso rejeitam a estrita divisão de papeis sociais, a subjugação da identidade pessoal a um objectivo maior, o esforço necessário de uma civilização que quer sobreviver. O velho astronauta morre sem a presença do novo mundo, do neto que chega atrasado, ao qual passar testemunho.

A ficção científica que conhecemos forjou-se neste cadinho cultural. Que ficção científica teríamos hoje, se os seus autores não tivessem conhecido a Primeira Guerra Mundial, nem a Segunda, nem o Vietname, ou não fossem ocidentais? Se não houvesse tantos engenheiros e cientistas em tais fileiras, assombrados com o impacto que o seu trabalho provocava no mundo, para o bem e para o mal? Teria abandonado o parentesco com a utopia? E sem ela, teríamos sequer chegado à Lua?

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