Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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06 Janeiro 2015

O Grande Irmão do Grande Irmão é aquele de que ninguém se lembra. É aquele que aparece de mansinho e se encosta a um canto de braços cruzados, empurrando os óculos demasiado largos e demasiado grandes contra a cana do nariz, expondo as favolas de coelho num sorriso de desconforto mal oculto pelo bigode ralo e pubescente enquanto coça, comprometido, as borbulhas do acne. Passa pela vista de quem rodopia na pista de dança, causa estranheza ao pessoal da festa, provoca comentários jocosos ou de comiseração, atrai a antipatia dos predadores de fraqueza. Ninguém lhe dá importância, e certamente que não o consideram ameaça. Ameaça é aquele que chega de olhar feroz, que não admite críticas nem comportamentos individualistas, que estabelece normas e modas e temas. É aquele que impõe ao espaço em redor uma imagem de si mesmo. É o que absolutamente nega o Outro. Ao redor dele, calam-se as conversas, desaparecerem sorrisos e graças. A música tem de ser aprovada por ele e os passos seguirão um manual de decência. O Grande Irmão atravessa o espaço da festa com passos calmos e vem colocar-se ao lado do seu Grande Irmão. Não se temem, ainda que se respeitem. São aliados. O primeiro precisa da antipatia e do ressentimento violentos que fermentam no espírito do segundo; este, por sua vez, precisa da força e da brutalidade que o primeiro lhe oferece. São imparáveis, em conjunto. São doenças diferentes que formam uma combinação fatal, o vírus mais o cancro. O que ataca de frente e o que corroi por dentro. Mas reconhecê-los é difícil. E difícil é entender quando agem em conjunto, quando nem sempre eles próprios reconhecem o papel que virão a desempenhar. Um pode chegar antes do outro. E vestir pele de cordeiro, balir, misturar-se no rebanho e acreditar, piamente, que o faz para o nosso bem:

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14 Dezembro 2014

Leituras. Comentários sobre livros recentes (repletos de parêntesis):

Eu Mato Gigantes, de Joe Kelly e J. M. Ken Niimura, lançado pela Kingpin Books, que opta pela estranha opção de um título bilíngue na capa, embora o miolo se encontre em português europeu. Necessidade de chamar a atenção a um público seguidor dos lançamentos e destaques internacionais? Bem, felizmente tais pormenores não comprometem uma história de crescimento e descoberta adolescente, contada a preto-e-branco com um traço económico inspirado em (mas não totalmente fiel a) estilos manga. Barbara, a rapariga cujas bizarras bóinas (?) com orelhas de coelho narrativa e personagens secundárias aceitam sem questionar, mais corajosa que a sua esquálida figura faria supor, com resposta pronta na língua (e ausência de bofetadas correctivas, o que nos indica estarmos perante uma «educação moderna»), anda pela escola a berrar a colegas e professores que mata gigantes, uma afirmação arrojada que não se ouvia na banda desenhada nem na animação desde os tempos da Disney.

A verdade é que gigantes parecem existir na sua vida, em particular aquele que vive no andar de cima (a classe média americana, recorde-se, não habita em apartamentos como os europeus) e de quem não se fala – e tão pouco dele se fala que as legendas saem riscadas (é um efeito minimalista mas eficaz). Barbara, tratando-se de uma adolescente mestre em jogos de tabuleiro (também aqui encontramos uma possível leitura de intervenção contra os estereótipos femininos na BD), vai passar pelos inevitáveis contratempos de integração social e bullying (nada mais cativa os geeks do que descreverem-se como vítimas, mas fica a pergunta: e isto não é também um estereótipo?), ao que não ajuda o seu conhecimento enciclopédico sobre gigantes.

Os autores conseguem estabelecer um clima de mistério e revelação gradual muito eficaz, em grande medida ajudado pela sugestão de um terror inominável que coexiste com a placidez de uma terreola de província e é capaz de suplantar o abuso diário, físico e emocional, que recebe dos seus conterrâneos. Barbara não é rapariga para se assustar facilmente, pelo que aquilo capaz de assustá-la se torna verdadeiramente perturbante no contexto da narrativa. É assim uma pena que o momento de revelação opte por uma interpretação simbólica desse terror e o inscreva numa circunstância de vida (nem por isso menos atemorizante, mas já fora do reino do Fantástico) comum a quem é ou foi filho. O acto final perde força, e só o carisma de Barbara, por quem nos afeiçoámos nos dois primeiros terços, é realmente o motivo para termos continuado (pois queremos saber se vai acabar bem).

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