Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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29 Maio 2011

São Bandos de Pardais à Solta. Quando apreciamos criticamente um romance que se destaca pela competência estilística mas cuja premissa base não se coaduna com a nossa visão - literária e pessoal - do mundo, que critérios devem guiar-nos? Devemos apreciar o livro apenas pelo que é, pontuando-o pela capacidade em responder aos desafios que se propôs a si mesmo? Devemos também julgá-lo por tudo aquilo que poderia ter sido dentro da sua proposta narrativa, todas as sombras dos livros que não foi e que espreitam a cada volta do enredo, a cada escolha frásica?

Esta, creio, é a questão essencial do debate que aqui refiro en passant e que, se não chegou a conclusões, está a presentear-nos com um dos melhores conjuntos de artigos sobre FC da nossa língua: se de um lado existe a paixão feroz e admirável de estabelecer padrões exigentes e coadunados com o cânone mundial - um reconhecimento de que não existimos isolados nem isentos de influências no tempo e no espaço -, do outro existe uma nivelização perante o efectivamente produzido a nível nacional e, sublimada, uma aceitação, por nós partilhada no limite do razoável, de que diferentes terrenos darão diferentes cultivos em diferentes estações. Um lado desespera com a imensidão dos livros-sombra, o outro encolhe os ombros e mostra como provas as palavras efectivamente escritas. Ambos têm razão. Não há volta a dar.

Mais interessante se torna observar o esvoaçar dos pássaros espavoridos pela amigável troca de tiros, efeito secundário habitual destes arrufos campestres - ou não fosse este um blogue com um bizarro apreço pelos efeitos secundários. Pousados e mansos a debicar no solo, o matagal esconde-lhes as formas, são iguais e indistintos; só quando se lançam nos ares é que lhes reconhecemos a natureza pelo padrão do vôo. Pintassilgos humildes, picões esfomeados, bicos-grossudos de cores garridas, melros que querem atenção, gaivotas em terra, estorninhos agitados - que ocultam por vezes o mais raro e sabedor estorninho-rosado, com os quais se confunde -, perdizes hilariantes, há de tudo, tudo se vê. Enchem os ares, os pássaros à solta, como sempre reagem quando assustados, alguns chilreando de irritação pelo barulho e incómodo, outros divertindo-se na confusão e aproveitando, já agora, para exercitarem volteios de proeza aérea. Alguns gaviões sobranceiros pairam vagarosamente à distância, como quem não se compromete, e o ocasional falcão aproveita para uma investida rápida, seja em lebre ou em pássaro mais distraído.

Quando voltarem a pousar, como sempre o fazem, voltarão a esconder-se no matagal, outras vez meras formas - ainda que não tão indistintas, agora que se expuseram. Que lhes restará, quando regressar o silêncio? Voltaremos a observá-los em bando? Arriscarão ocasionais vôos solitários? Ouviremos finalmente a resposta a uma pergunta fundamental e bastante mais séria: e não se destinam os tiros, realmente, a afugentar um predador maior? Um predador que tudo uniformiza e tudo cala, que devora cores e curvas, que detesta pontos de interrogação e números aleatórios? Um predador tão lento e insidioso, que é preciso sacrificar anos de vida, de arma em riste e pose erguida, para se perceber o avanço? Um predador que adora os passarinhos que debicam no chão? Entendem a que nos referimos?

Eis a questão que devia preocupar-nos: quando regressar o silêncio, e os atiradores se recolherem por fim no conforto da idosa complacência, quem lhes renderá a guarda?

Ponderem então se é de silêncio que realmente precisamos.

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28 Maio 2011

Eis, A Meu Ver, O Rosto Do Verdadeiro Terror. 

Mr. Duncan, a 45-year-old novelist who lives in South London, invented [the werewolf] Jake out of desperation. His previous seven literary novels sold poorly, and his agent said the prospects for selling the next one were bleak. "It was a rather mercenary and practical decision to try to write a straight genre novel," Mr. Duncan says.[...] The gambit worked. The novel sold in 18 countries. Knopf bought an entire werewolf trilogy—Mr. Duncan is currently finishing the sequel—and plans to release the first novel in July. Ridley Scott, director of films like "Alien" and "Blade Runner," optioned the film rights. "Thus far, it's been the smartest move I've made," Mr. Duncan says.

E historicamente não devia sê-lo. Não é a primeira vez que um escritor de qualidade se refugia nas entranhas do bicho género para conseguir vingar no mundo literário (e por vingar, refiro-me a ganhar dinheiro). Encontram-se ecos de iguais escolhas nas vidas de James Cain, Raymond Chandler, Jim Thompson, Bruno Fisher, alcançando possivelmente o apogeu em Max Brand, cujo dinheiro ganho com histórias passadas no Oeste americano lhe permitiriam comprar uma casa em Itália, onde encontraria a paz e inspiração necessárias para desenvolver a sua paixão pela poesia clássica - sem dúvida um modelo invejável. Compromissos desta natureza (vulgarmente conhecidos por «engolir o sapo») não são fáceis de aceitar por autores que começaram por ter aspiração literária; por muito que aqueles que de nós chafurdam na poça de lama defendamos, com justiça, os elevados valores intrínsecos, este meio continua e continuará a ser encarado com desprezo pelo mainstream, em constante desacordo com a importância dada, pela literatura de género, ao enredo, ao cenário e a qualquer factor externo à condição humana. Quem tenha crescido a alimentar-se com Faulkner, Joyce e Maugham dificilmente irá encarar as ficções dos contemporâneos Heinlein e Asimov como algo diferente de brincadeiras de crianças - a não ser que também tenham feito parte do leite materno e expandido a mente do infante com a capacidade de deslumbramento e imersão de que só a literatura de género é capaz. Dizia que o compromisso de escrever pulp e science fiction nunca era fácil de aceitar pelo jovem aspirante a autor, mas como contrapartida, estes autores procuravam melhorar o género, enriquecendo-o com uma sensibilidade literária que os autores habituais não tinham competência para fazer. Escondidos por detrás de pseudónimos convenientes, trabalhando num anonimato relativo, conduzindo experiências a que o público ia reagindo, pode afirmar-se que foi em grande medida graças ao trabalho forçado destes «condenados» que o género se expandiu e permitiu inspirar uma nova geração a utilizá-lo enquanto terreno literário fecundo e versátil.

Perante esta perspectiva história, em que se enraiza o meu receio? Que diferença existe entre a escolha dos autores do passado e dos autores do presente? Não se trata da mesma escolha, da mesma compulsão de escrita e reconhecimento e, no final, de pagamento?

Sim e não. Não há diferença na escolha. Há diferença no anonimato.

As escolhas do passado não surgiam nas páginas do New Yorker nem do Guardian. Não tinham o sabor de apostas numa hipotética Bolsa de Valores literária. As obras não iam a leilão antes de estarem escritas. Não se tornavam no esforço de marketing de editoras gigantescas em dúzias de países em simultâneo. Não se gerava expectativa nas lojas. Não faziam parte dos lançamentos de Verão nem das escolhas da rentrée.

Ter o mundo ansioso à espera da obra. Eis a melhor situação para um autor. Eis a pior situação para a literatura.

Quando se cometia um erro, quando a história era rejeitada ou se falhava um prazo, quando se despertava a animosidade num editor, haveria outro a quem recorrer. Um polir do texto, alterar o pseudónimo, situar no West End ao invés do Bronx - para a esquerda ou para a direita, somos todos filhos do mesmo espaço urbano. As histórias eram curtas, escritas a ritmo alucinado, sem revisão nem coerência. Uma experiência literária com o botão fast forward premido, como diria o Gibson - da inúmera bosta acabaria por sair gema, pois tal é a natureza da evolução selectiva. A fama surgiria aos poucos, acumulada texto a texto, à medida da resposta do público e sustentada por este. Depois o dinheiro. Depois o prestígio nas teses literárias. Não o inverso.

Falhar agora, com um contrato à volta do pescoço, é ter o suado emprego de muita gente nas mãos. Ninguém quer esse tipo de sangue na consciência. Não lhe será concedida segunda oportunidade. Aliás, se os ventos do mercado mudarem de feição, não haverá sequer virtuosismo presente que lhe valha. O mundo empresarial não pára para recolher os feridos.

Ah, e essa internet, que nada esquece e pouco contextualiza...

Vendeste a tua alma, meu caro, e pela tua alma não arriscarás experiências literárias. Os teus vampiros farão parte dos bem comportadinhos, para surfar a onda, ou sairão dos moldes clássicos, por que queres parecer inconformado. Terás umas pitadas de ciência à mistura, mas não te vais esticar, para não afastar a malta. Se fores demasiado geek, a NY Review of Books nem te tocará com uma vara. A não ser que te tornes no über-geek, fiques milionário por outras empreitadas - mas nesse caso vão ler-te pela tua fama e não pelas tuas palavras. As tuas palavras, que deverão surgir amontoadas aos milhares, para poderes vendê-las ao quilo, e deverão ser simples e imediatas, repletas de descrições e diálogos naturalistas, sem aqueles jogos de estilo tão difíceis e caros de adaptar ao cinema.

E ai de ti que inventes monstros ou fábulas de que ninguém ouviu falar. Que enalteças pederastas, fascistas ou anti-semitas. Que sejas desconfortável além do limite permissível. Limita-te aos vampiros, aos zombies, aos lobisomens, aos anjos e outros arquétipos do mundo ocidental que não possam ser mal entendidos como representação racista de alguma minoria. Segue os critérios estabelecidos pelo departamento comercial.

Porque na era do global, sabemos onde te escondes.

(E a pior tristeza deste Diabo é a sua preferência por Fantasia, pois nem prometendo a alma, a casa, o carro, o nome e alguns apêndices corporais uma pessoa consegue publicar Ficção Científica...)

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