Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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25 Agosto 2010

Seria Mais Apropriado O Título Não É Um Romance, Mas Uma Noveleta Inchada. Esta sensação surge logo de início, quando Dagmar se encontra presa em Jacarta, em pleno colapso económico traduzido em conflitos urbanos. O problema não se encontra na verosimilhança da situação apresentada nem o desenrolar dos eventos - diga-se de passagem que é a escrita profissional de Williams que, em grande medida, salva o livro da mediocridade - mas por nos ser mostrada de forma terrivelmente banal. As autoridades demonstram a incompetência esperada, o embaixador dos EUA foge com o dito entre as pernas perante as câmaras, permitindo ao autor amaldiçoar certos comportamentos políticos do seu país (outros comentários surgem mais adiante, notando-se que não foi capaz de se conter) e a pobre da rapariga assiste ao derrube local da civilização do seu quarto de hotel, pensando quando vai chegar a vez dela. Reside no patrão de Dagmar, um multimilionário que venceu na vida graças a uma empresa de software e a ARG's lucrativos, encontrar uma forma de retirar a amiga de faculdade e empregada do meio do caos colectivo. Contrata a óbvia empresa de mercenários, que se mostra obviamente incompetente, pelo que Dagmar é obrigada a virar-se para a inteligência colectiva dos jogadores de ARG (não vos tinha dito ainda que Dagmar é a autora e gestora de jogos de realidade alternativa com milhões de seguidores?) e lançar-lhes um apelo de ajuda - eles que são aptos a desvendar enigmas lançados pelos criadores dos jogos -, explicando que a situação Não É Um Jogo.

Não irei estragar-vos a surpresa se disser que Dagmar foge e regressa ilesa ao país natal, por que chegarão a esta descoberta logo algures nas primeiras cem páginas. O que prometia ser uma narrativa entusiasmante sobre a fuga de uma americana das garras da barbárie não-anglo-saxónica, pejada de fugas, contratempos, ameaças eminentes, e demonstrações da inteligência da consciência colectiva que a internet consegue alcançar (devidamente doseada de iguais demonstrações de extrema estupidez, como as flame wars), até aos queridos braços da sala de alfândega do LAX, dissipa-se no mero virar de página, mal a rapariga coloca os pés no barco do pescador que a faz saír do país, se anuncia o «Acto 2» e começa uma história completamente diferente. Somos assim facilmente logrados de um prenúncio de interesse, após o investimento de setenta páginas a aguardar que algo de fantástico ou de diferente aconteça, pois afinal o Walter é cá dos nossos e fui encontrar o romance numa livraria de FC.

Como disse, o autor é muito profissional e lá encontra maneira de juntar o enredo inicial com o tépido enredo posterior, que envolve assassinatos, amizades, traições e muito pouca profundidade de personagens. O desenlace anuncia-se à distância, e se nos mantemos em situação de suspense é por pensarmos que é demasiado óbvio e nos será entregue outra cabeça no prato. Quem anda nas lides da FC e dos thrillers pseudo-tecnológicos reconhece de imediato o odor da conspiração, e quem percebe minimamente de informática, internet e da volatilidade dos protocolos de comunicação, sistemas de segurança e evolução de sistemas operativos tem dificuldade em crer na estabilidade de agentes autónomos tão inteligentes que, não só infectam todo o tipo de computadores, como aprendem e evoluem com base nessa aprendizagem sem serem detectados nem consumirem recursos e espaço em disco com a necessária base de dados gigantesca.

É díficil conciliar este romance de tarde de Verão na praia, que se lê enquanto se vigia os miúdos, com Days of Atonement, aquela brilhante exploração da mentalidade de Salt Lake City exposta ao fenómeno das realidades alternativas e que foi um dos melhores romances da década de 90. Mercado oblige?

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23 Agosto 2010

Uma Das Melhores Histórias do ano. Notem como a estrutura em actos, e a abordagem distanciada do narrador ao início (como se dissesse ao leitor, «considerem a seguinte hipótese»), contribuem para nos aproximar da situação apresentada, e efectivamente ponderá-la enquanto cenário social. É sempre difícil encontrar o devido equilíbrio quando se escreve sobre o abuso físico e social das crianças - quase sem se aperceber, o autor pode incluir uma frase ou uma imagem chocante capaz de induzir ao repúdio imediato ou à lágrimazinha pungente, estragando o efeito do todo. A criança deve ser entendida, para efeitos literários, como um ser integral, com ideias e aspirações e hábitos e sentimentos, e não projecto em gestação de um futuro adulto. O que a história torna convincente, de uma forma inovadora, é encarar a criança como mais um recurso para uso social por que, para todos os efeitos, os verdadeiros senhores do mundo nunca chegaram a nascer. O estádio da criança, os passos do crescimento, são-lhe então alienígenas, e não têm lugar na definição vigente de moralidade.

Uma nota final sobre o conto: decorre num daqueles futuros, tão próprios da década de 2000, em que a humanidade se instrumentalizou a si mesma, de preferência pelo recurso à engenharia genética; os indivíduos são apresentados com capacidades físicas e cognitivas ampliadas e potenciadas para atingir níveis que não seriam alcançados pela mera evolução natural (lembre-se que a evolução está condicionada pelas exigências do meio ambiente e não pela vontade humana), existem várias facções/sub-espécies de seres humanos, e estão normalmente subordinados a uma consciência colectiva semelhante à internet. Aparte o facto de já ter escrito sobre este tipo de futuro, há um ponto em que, até certa medida, se tornam pouco convincentes: quando se pressupõe que a nova Humanidade requer concepção e parto assistido por tecnologia para vingar. Ora, se a Humanidade chegou ao ponto em que se encontra, é precisamente por que a reprodução é um mecanismo totalmente autónomo da vontade consciente - um mecanismo complexo mas relativamente fiável, pois acerta mais vezes do que falha, e que não requer a assistência de tecnologia externa à do próprio corpo para funcionar. Tão condicionados estamos pela insistência da reprodução que a única etapa que depende da nossa vontade consciente - a cópula - é algo a que dedicamos grande atenção durante as nossas vidas, que a nível individual quer colectivo. Interromper este processo e fazê-lo depender de tecnologia é, a meu ver, um passo para a extinção. A tecnologia humana é frágil, de vida curta e requer permanente assistência para funcionar - e quanto mais complexa ou delicada a tarefa, maior a probabilidade de erro. Apresentar um futuro em que a reprodução dependa, não apenas de um homem, de uma mulher e de quinze minutos, mas de uma equipa de técnicos e de maquinaria, e tentar torná-la sustentável, é, a meu ver, um futuro mal explicado, incompleto ou tendencioso.

Ainda assim, que esta perspectiva não vos estrague a leitura do excelente «Arvies».

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