24 Julho 2010
Existe Uma Dinâmica recente na minha vida, na qual, se não consigo convencer-me a assistir a um filme na semana de estreia, serão grandes as possibilidades de só o encontrar no formato vídeo. O que tem o seu historial de ser, tendo a experiência cinéfila sido transformada num esvoaçar dos pirilampos-telemóvel na escuridão enquanto a audiência envia SMS a não sei quem, acompanhados com a banda sonora de dezenas de baldes de pipocas e refrigerantes a descerem gargantas alheias. Desta vez, cheguei a presenciar inclusive uma situação em que a empregada do bar, ainda que discretamente, entrou na sala em plena exibição para trazer uma encomenda a alguém. A ida ao cinema procura adoptar de propósito os maneirismos e circunstâncias de assistir-se a filmes no sofá lá de casa - quando conseguirmos estar de cuecas na sala de cinema, sei que teremos atingido esse objectivo.Inception teria sido correctamente traduzido para Germinação - trata-se afinal do germinar de uma atitude a partir de uma ideia, frase que reconhecemos do quotidiano. As ideias são resilientes e também perigosas; as ideias são o que nos define, afirma o filme - ainda que não se deixe enganar pela sua própria retórica e demonstre, em bom jeito de storytelling, que quem nos define são, afinal, as atitudes.
O filme, que vale tanto ou mais pela vertigem visual que pela narrativa algo confusa, lida com a capacidade tecnológica de invadir, manipular e partilhar sonhos - neste caso, para «roubar» informações ou «implantar» ideias, num cenário de espionagem industrial. Os sonhos são assim cenários de realidade virtual, até certo ponto, e como tal, com liberdade de ser e acontecer. «Vamos filmar sonhos» parece, então, tornar-se na frase redentora de um realizador em Hollywood. Despoja-se de formas e estruturas aceites. De repente, tudo é possível no palco cinematográfico, a metáfora invade a história, a cenografia solta-se das amarras e pelo guião voam ruas que se dobram e bares que se inclinam para demonstrar que a vida pode ser ilusão - algo a que, penso, já o Shakespeare aludia. O cinema aproxima-se da sua plenitude enquanto arte, e não se limita à montagem de sequências captadas por uma câmara passivamente observadora: a imagem torna-se ela própria um veículo de narração. O foco sobre o plano que define um filme convencional, o foco necessário para incidir sobre a história, é aqui limitador. Queremos olhar para o lado. Queremos ver uma Paris totalmente dobrada sobre as nossas cabeças. Assim manipulada, para fins narrativos, a imagem revela a sua potencialidade enquanto forma e inspiração, igual potencialidade que reconhecemos à palavra escrita.
É inevitável fazer comparações com Eternal Sunshine of the Spotless Mind (não conspurcando o título, que é uma citação de Pope, com a pretensa versão portuguesa), obra cinematográfica de referência sobre o habitar do espaço mental. Mas neste jogo de lado a lado, Inception fica a perder, pois está mais interessado no virtuosismo que na viagem emocional. Se a derrocada progressiva do protagonista de Jim Carrey é sublimemente apresentada como uma luta contra o esquecimento, através do apagar de luzes e do derrube de estruturas, as construções imaginadas de Inception são pinturas fantásticas destinadas mais a provocar o assombro no espectador que propriamente o envolvimento narrativo. Os personagens são relativamente ocos, e um deles acaba por reconhecer até que não passa de turista na acção. Gostaria de crer que se deveu a um artifício inteligente por parte de Chris Nolan - que toda a história era um sonho muito elaborado, e que portanto só o protagonista é que teria alguma profundidade -, mas a abordagem, um meio caminho nunca bem definido entre filme de aventuras e pretensa «golpada» e herói a querer redimir-se do passado, não é o que sugere. Ainda que exista a (inevitável) dúvida sobre a natureza da realidade, e que Nolan tenha plantado alguns indícios, como a pista de os miudos nunca mostrarem a cara, inclusive na sequência de flashback; como a informação de que o pião só gira eternamente nos sonhos da ex-mulher, indicando-nos que a história é na verdade o sonho dela, o que implica que teria sido ele a receber a Implantação e a matar-se...
Não é displiscente relembrar a entrevista que Nolan deu no seguimento da estreia de Memento - um filme mais inteligente e bem sucedido em questionar a natureza da realidade -, na qual afirmava que, com o advento do DVD e do cinema em casa, os filmes tinham de aguentar-se a visionamentos repetidos e oferecer continuamente perspectivas novas. Aqui, e não obstante um par de sequências delirantes filmadas em tambor rotativo (talvez o melhor uso do mesmo no cinema desde 2001), a novidade acaba por desvanescer-se, como um sonho do qual se acorda.
Uma nota final: ao contrário de Abigail, e mesmo concordando com muito do que afirma, não consegui classificar este filme como ficção cientifica. Por muita explicação que seja apresentada em outros assuntos, a realização do sonho partilhado é algo completamente posto de lado, e não é uma veia injectada no braço que me vai convencer da capacidade tecnológica.