30 Junho 2010
A Inocência Inabalável Do Idoso e doce casal daquela britânia rural é o que acaba por destroçar as nossas reservas e envolver-nos no minimalismo insidioso do que é possivelmente o mais cínico e terrível de todos os filmes sobre o advento da catástrofe nuclear. When The Wind Blows é uma vontade do passado que demorou mais de vinte anos a concretizar-se, pois deixei o filme desaparecer dos cinemas em 1986 (era, afinal, um filme com música de Roger Waters), sem desconfiar que só voltaria a reencontrá-lo há poucos meses, numa edição portuguesa em formato DVD.Nessa época, emergíamos lentamente da Guerra Fria, e apesar de a ameaça da Bomba se manter um tema solene e actual, dando azo a obras políticas como Beyond Armageddon, uma antologia de contos organizada por Walter M. Miller que recolhia diversos manifestos de FC sobre o tema da guerra, começavam a notar-se sinais de alívio, perante o soçobrar do bloco soviético e a propagandização ocidental do conceito da perestroika. Em poucos anos, os romances sobre o pós-guerra apocalíptico deixariam de ser moda e o tema desconfortável de um inverno nuclear desapareceria do portefólio de futuros de bolso sobre os quais os autores de FC se debruçavam. Pode dizer-se que o inverno se dissipou para dar lugar a uma paisagem maravilhosa de possibilidades tecnológicas, longevidade e ciberespaço para todos... claro, até que o século XXI voltou a descobrir a perenidade dos futuros.
Apesar de todas as crises económicas, ecológicas e pandémicas com que ciclicamente somos alimentados - e que acentuam a constante desconfiança que nos está a ser escondida uma tragédia maior -, a possibilidade de que um conjunto de loucos democraticamente eleitos (e outros não tão democraticamente) pudesse destruir o planeta em poucas horas está agora longe das nossas mentes; espero que consigamos, historicamente, olhar para trás e encarar com o devido medo aquela época em que permitimos, como espécie, uma situação mundial de tamanha loucura. Sem esquercer que a Bomba ainda existe, mas está calada e muda no silo, afastada da nossa preocupação diária - talvez demasiado afastada -, e todos aqueles futuros de chuva radioactiva e morte global nos parecem, agora, antiquados e redutores (teremos igual opinião amanhã das eco-catástrofes que hoje se querem precaver?). Em particular os futuros que se centram na queda da civilização, no retorno à barbárie, na descrição fastidiosa dos efeitos da radioactividade.
Quando o Vento Sopra é um filme menos grandioso, mas em muitos aspectos, mais forte. Em grande medida, por que a denúncia não se centra tanto na consequência de uma guerra dessa natureza mas na incapacidade do governo britânico em proteger e informar devidamente o povo. Neste aspecto, é um assunto bastante local, pois o adorável casal da história assume que o governo lhes dará a devida assistência, como tinha dado poucas décadas antes, quando os inimigos eram alemães. São incapazes de perceber que, não só o governo mudou, como o conceito de guerra é bastante mais devastador do que estavam habituados. Deixam-se assim iludir pelas informações de panfletos ridículos, seguindo instruções que em nada os preparam convenientemente para a verdade, acreditando na promessa de retoma dos serviços mínimos, de que haverá uma entidade estatal preocupada e com meios para resolver a situação, após a queda da Bomba. É terrível vê-los sentarem-se no quintal da sua humilde cottage campestre em ruínas, sob os céus cobertos de fuligem, com os campos queimados e as estradas derretidas diante deles, comentando sobre a paisagem completamente desprovida de vida e a imensidão do silêncio, e continuarem a crer que faltarão apenas dias até que chegue socorro institucional. Saber que foram indevidamente avisados a respeito do perigo da radioactividade e constatar progressivamente o fim inevitável, à medida que os sintomas físicos vão surgindo. É uma comédia amarga que se torna inesperadamente íntima ao relacionarmos as atitudes e opiniões com as dos familiares próximos, ou com a imagem do que poderíamos ser naquela idade. No final, o casal sobrevivente acaba por aceitar a morte, possivelmente até a desejá-la; a vontade de ida à padaria, a curta deslocação à casa do leiteiro, ainda que mitigasse a fome e a sede, nunca se vão concretizar. O mundo desapareceu, pressentem isto mas não querem aceitar. E como qualquer casal de longa idade, no final só se têm a si mesmos, deixando-se envolver na rotina fossilizada dos seus pequenos entendimentos para esconder tudo o resto, toda a desolação, encontrando nas desculpas de um amanhã melhor uma forma de aceitar a morte lenta em paz, únicos actores e espectadores de longa data do seu próprio espectáculo privado que apenas aguardam o eminente cair do pano.