22 Abril 2010
É Como Se Nesta Era guardar memória fosse um hábito decadente e o passado, algo de que nos envergonhamos. Refiro-me à atitude da nossa civilização a tudo o que cheire a bolor, que fique no báu demasiado tempo. Nesta era, aos livros não se permite a dignidade de se desfazerem em folhas soltas de lombada partida, fruto do manuseamento e testemunho do Tempo, as margens não amarelecem, as capas não se apagam lentamente ante a exposição prolongada ao sol numa montra que nunca muda, qual polaroid às avessas. Nesta era, os livros não são como o vinho, não repousam nas livrarias a aguardar que o leitor nasça e cresça e finalmente os descubra, vinte anos depois, arrumados num canto - não acontecerá esta história de descoberta, esta vivência do amor de dois seres que estavam destinados.Nesta era, os livros são transformados em polpa por causa do número que aparece numa linha própria de um outro livro feito de números. Todos sabemos que as palavras são esguias, enquanto que os números são disciplinados. As palavras vivem das sombras e das curvas, os números vão directos à questão. Um livro feito de palavras não é páreo para um livro feito de números. As palavras podem cantar, mas os números berram e fazem-se ouvir. A beleza que existe nos números não é a beleza estética das palavras; se num mundo justo ambos poderiam brilhar, neste mundo tortuoso e complicado travam um combate desigual. Em particular se a pessoa que os avalia tem também números a pesar-lhe na alma.
Que os livros não esperem por nós, é um incumprimento da natureza do livro. Que nos seja negada, pelas circunstâncias da nossa civilização, a oportunidade de descobri-los como antigamente, é uma perda na nossa vida. E depois esta sensação de algo irrecuperável que vemos afastar-se, como se lançado à forte corrente. O que se afasta somos nós. Aquilo que fomos. Aquilo que fizemos.
Quando esta descoberta não acontece, a experiência de vida não acontece. A ausência de memória torna-se na memória da ausência. Se o livro não está na prateleira, não o compramos. Se não o compramos, não o lemos. Lemos o próximo, lemos o livro ao lado, mas não lemos aquele. E porque o livro não volta, nesta época que rejeita a figura da coisa antiga, lentamente desaparece, desvanesce-se, nunca se ouviu falar. Não se escreve sobre. E por isso, não existiu.
Entende-se que a tendência do esquecimento tenha influenciado as escolhas limitadas. Que o ritmo diário e a pressa de responder tenham abreviado a reflexão. Ninguém é infalível, leituras são subjectivas e gostos não se discutem. Talvez se desconheça inclusive até que ponto outras obras preencheriam os requisitos adicionais de destaque na imprensa (o que se entende por destaque e qual a imprensa em causa?) e de best-seller (como medir best-sellers em diferentes épocas?). Em particular se as recomendações que acabaram sendo apresentadas são irrepreensíveis, todas as duas.
Mas depois não se entende - o destino é falar de clássicos, e clássicos, em eras de antanho, costumavam abranger décadas que não a presente. O truísmo de que há pouca FC em Portugal não deixa de ser incompleto, ao não informar que na década anterior, e nas décadas antes dessa, o fantástico que havia era quase exclusivamente FC. A ausência de informação vai tornar-se na informação da ausência.
Ao ombrear com listas que remotam ao início do século XX e ostentam inúmeros galardões literários (ainda que, se formos esmiuçar as recomendações estrangeiras, possamos chegar à conclusão que a recomendação nacional terá sido, correctamente, mais exigente no cumprimento dos critérios pedidos), resta uma inadvertida mas infeliz sensação de pobreza de exemplos, de uma cultura figurativamente menos expressiva.
A esta sensação mistura-se um certo desconforto pessoal - estará na suspeita de quem lê e não faz sentido negá-lo. Ainda que não tenham sido pedradas no charco - longe disso -, há obras do próprio que mereceriam ser incluídas, pois aconteceram na aridez que sempre caracterizou o género neste país.
E muito antes destas, mandando devidamente o próprio à fava, ainda que não se quisesse incluir o tal calhamaço de referência a quatro mãos, existiriam uma Pedra de Lúcifer, um Limites de Rudzky, um Veleiros do Tempo Cósmico...
Perguntarão: quer-se assim dizer que tem de haver uma lista mandatória de obras a mencionar em todas as ocasiões, e se não for cumprida comentários como este vão imediatamente surgir, qual prima-dona apupada em palco? A resposta imediata é não.
Excepto talvez no caso em que a resposta imediata é sim. Em que somos embaixadores da História do país no palco das Histórias de muitos países. Lágrimas de Luz (para falar do concreto e do conhecido) é um livro cheio de falhas que marcou a geração de 1980 em Espanha. Temos equivalente? Diria: Os Caminhos Nunca Acabam. Cheiinho de falhas, é verdade, mas é nosso, é um marco, merece destaque, e precisamos de aceitá-lo. E como a este, outros.
Não pretende isto ser mais do que um comentário cordial, que, antes da publicitação do feito, talvez surgisse em conversa privada. É algo que está longe de ser importante, perante a vontade partilhada de desenvolver o Fantástico nacional - e reconheça-se neste âmbito a tal incrível e muito admirável capacidade em reunir e incluir as mais diversas franjas do Fantástico nacional, inclusive contra trabalhosas e inesperadas resistências do dentro do próprio meio. Mas ainda assim é um comentário que não podia deixar de acontecer.
Talvez o que valha a pena seja perceber questões mais profundas. Existem clássicos do Fantástico português? Temos todos consciência dos mesmos? Variam por pessoa, por faixa etária, por preferência de género, por experiência de leitura? É fácil definir um «clássico»? E será exequível apontar sem falhas o que se considera por Fantástico nacional? Fica o desafio à reflexão.