Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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12 Agosto 2007

E JÁ AGORA vão ver a Criatura - The Host, o filminho recém estrado de terror/humor sul-coreano sobre a tortura existencialista de um anfíbio com excesso de testosterona... contém o número suficiente de abordagens acima do banal para ser salvo da mediocridade habitual neste tipo de filmes, e inclusive algumas poderiam ser consideradas como cinema de qualidade. As actuações são vigorosas e empenhadas, sendo particularmente memoráveis quando da morte do ancião (notem como em câmara lenta, sabendo-se perdido, este limita-se a dizer aos filhos que prossigam) e quando da tentativa de salvação da rapariga no fosso enquanto o monstro dorme. Contém um excelente momento cinematográfico, uma pérola desenquadrada do resto do filme, no qual a miúda que procuram salvar surge em pensamento à família enquanto saciam a fome, e que me fez recordar Bergman. Infelizmente o enredo errático, o comportamento inverosível dos orgãos de poder e das forças de segurança, a ausência de uma «atmosfera de medo» sólida e permanente, e a sensação excessiva de que o verdadeiro personagem não será a criatura mas o sistema de esgotos do rio Han (à semelhança de Person, também me ocorreu que o leitmotiv do filme teria surgido ao realizador durante uma visita aos mesmos) não lhe permite ascender ao estatuto de um Alien, ficando-se por um Tremors vitaminado, e demasiado longo (hora e meia teria sido suficiente). Perfeito para uma noite de domingo após um dia de praia.

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12 Agosto 2007

A INSATISFAÇÃO DE CONTRIBUIR para a discussão eterna entre Ficção Científica e Mainstream, e respectivos méritos e justificação literária, é de entender que, como em qualquer contenda humana segregacionista, ambos os lados promovem a dissociação ao invés da síntese, o unilateralismo ao invés da fusão, dificultando a percepção das reais causas da guerra. Se o mainstream é criticado (com toda a justiça) por fazer incursões supostamente corajosas nos territórios ocupados pela FC, laudadas como verdadeiras invasões mas que na verdade nem sequer desembarcaram na praia (veja-se o caso de Sob a Pele de Michael Faber, os Filhos do Homem da P. D. James, ou a recente Estrada), a Ficção Científica assume demasiado facilmente a pobreza do mainstream como contendo exclusivamente romances sobre relações, sexo e intimismo, condenando ao oblívio obras como Gente Feliz com Lágrimas, O Vermelho e o Negro, Look Homeward, Angel, Morreste-me. Ambas as posturas são irredutíveis, e sinceramente duvido que um casamento se venha a efectuar, ou que seja mesmo desejável - os compromissos para tal união iriam certamente fazer diluir as características essenciais e específicas de cada género e criar algo morno e tépido e intragável, como uma matiné de Hollywood para as famílias. No entanto, como em todas as guerras, existe uma perda, neste caso uma Terra de Ninguém que é cultivada nem explorada ao máximo do potencial - quer por escritores quer pelos leitores. Um terreno no qual poderiam surgir pérolas de síntese capazes de demonstrar que, não só é possível construir a metáfora de FC e adorná-la com uma sensibilidade umbiguista (impossível de evitar, pois todos nós temos umbigos) sem perder a noção do transcendente, como é preferível que tal aconteça, para ganho global da obra (não duvido que as pérolas se enterrassem no meio de muita, mas mesmo muita porcaria, mas também acredito que de uma forma ou outra algumas acabariam por brilhar e demonstrar novas formas de escrever).

Existem e continuarão a existir ocupantes desta Terra; são apropriados com maior ou menor vigor por diferentes facções do mainstream e da FC, consoante os pesos relativos que cada uma das facções encontre das respectivas práticas nas obras. Steve Erickson é praticamente ignorado pela FC, Ballard existe num equilíbrio instável do qual a sua ficção mais recente (comtemporânea) não veio salvar, LeGuin encontra muitos apoiantes pela sua prosa articulada e pela defesa do feminismo, M. J. Harrison apropria-se de temas fantásticos mas o seu foco é bem mais intimista, Banks diz que vai mantendo um pé em cada domínio mas na verdade nunca escreveu um livro de puro e assumido mainstream. Estes são apenas alguns - os anos 60 foram uma ocupação massiva da Terra de Ninguém, um verdadeiro Natal de tréguas, e no seu estudo poderão encontrar-se outros resultados igualmente válidos (Moorcock, Anna Kavan, Joanna Russ), mas que por várias razões não são reconhecidos (os que ainda escrevem) pelo núcleo duro dos géneros como contribuidores activos.

Numa clareza que poucos dentro do género possuem, Daniel Green fala-nos da necessidade do realismo e da natureza do enredo. E de facto, nos autores evidenciados, encontramos preocupações de estilo e propostas literárias que procuram alternativas às soluções normalmente encontradas nestas áreas. Nos livros de Erickson não há um enredo explícito, normal, descodificável pela maioria dos leitores. Ballard sempre tentou esquivar-se à necessidade de uma estória, mas interessantemente pela acentuação do realismo, pela construção de um cenário artificial onde se encontrassem os códigos para o desenvolvimento do enredo. Le Guin aborda esta contenda com conservadorismo, o que lhe valeu um punhado de excelentes obras no decorrer dos anos 60 e 70, e se a sua única e corajosa incursão nas profundezas da Terra de Ninguém (com Always Coming Home) não recolheu os frutos que desejava (o interesse pela excessiva análise antropológica de uma cultura completamente inventada possivelmente não teria muitos adeptos entre os que não são antropólogos à partida), talvez isso se devesse ao facto de não ter ido suficientemente longe, de ter encontrado soluções fáceis e inventado uma cultura pré-tecnológica em tantos moldes semelhantes às existentes na actualidade que em nada nos transmitia a sensação de iluminação e estranheza indispensáveis a qualquer distorção da realidade. Harrison diminui a importância do world-building, e de facto quem leia um conto como Tourism reconhece uma forte presença autorial mais interessada na reacção humana face a desafios da realidade, e se a FC o apropria para si é por pensar reconhecer em Light e Nova Swing (apenas porque falam aparentemente sobre viagens no espaço e singularidades) pontos de contacto comuns.

Partilho de muitas das opiniões do comentário no blogue, contesto outras. O realismo obsessivo, pormenorizado, barroco (apropriando-me de uma caracterização singular de Jorge Candeias perante a ficção de João Barreiros) é indispensável para a FC, e muitas das vezes fundamento do prazer da leitura. De que outra forma trazer à vida um mundo que não existe, de concretizar uma metáfora? O perigo, ou pecado, está em cometer excessos, em querer tornar demasiado precisa a caracterização, de tal forma que o pormenor se torna técnico e logo distorce a função de metáfora e se torna em mero proseletismo, mesmo sem haver intenção de. Pessoalmente, sempre me aborreceu a ficção que precisa de situar-se num tempo e num espaço, e daí a minha reserva (in)consciente em carimbar com datas precisas o momento da narrativa. A viagem literária é - tem de ser - essencialmente uma viagem interior, uma viagem de percepções, salpicada com condimentos de pormenor espaço-temporal q.b., inevitáveis pois o que nos rodeia também nos povoa a mente. E embora admire, e me encante, o excessivo pormenor técnico sobre funcionamento dos átomos, das dobras espaciais, das peculiaridades relativisticas, também reconheço que muito deste prazer provém do desconhecimento - um físico, um biólogo de profissão terão leituras diferentes. É uma sensação - desconfio - partilhada pelo fandom de FC, e que ilude muita da apreciação do que é boa ou má ficção. Mas será que isto constitui literatura? Até que ponto conseguimos reproduzir o sucesso de Moby Dick? Pelo meu encontro fortuito com algumas obras do passado, poucas se salvam à tenacidade do tempo - a tecnologia é risível, as sociedades ingénuas, os livros mostram-se terrivelmente datados, e só algum saudosismo, com kitsch à mistura, impedem algumas obras de voltar à tona. Não é por acaso que apenas as obras que: a) existam hermeticamente em universos completamente inventados sem contacto evidente com o mundo real  (Vance); b) funcionem como sátiras (o grande exemplo da Guerra dos Mercadores); c) sejam tão vagas ou distantes nos postulados científicos que se poderiam inscrever no ponto a) (Dune, Wolfe) - apenas estas consigam ultrapassar a barreira dos tempos e sobreviver como obras permanentes de FC, e logo da literatura.

Está obviamente na natureza do leitor justificar as escolhas, porque daqui depende a sua identidade específica - é pitoresco notar como quanto mais detalhadamente nos apropriamos dos objectos preferidos (gostar deste e deste e daquele livro ou tipo de livros) mais estamos a comunicar ao mundo em que ponto nos encontramos no mapa literário. No final, reductio ad absurdum, cada leitor acabará por tornar-se num movimento literário próprio, e terá a liberdade de escolher sem sentimentos de culpa. Desde que se entenda esta liberdade, que esta liberdade existe e pode ser praticada sem reprimendas, nenhum mal virá ao mundo com tais discussões.

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