Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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22 Julho 2007

APROPRIAR-SE DE ACONTECIMENTOS DO QUOTIDIANO para fins literários é uma faca de dois gumes: se por um lado mostra uma cultura capaz de ficcionar a sua própria experiência e guardar dela memória, por outro lado exige um rigor e uma responsabilidade de abordagem acrescido - na apresentação dos factos, na dissecação dos pormenores, e mais importante, na subtil atribuição da culpa inerente a qualquer processos narrativos -, uma vez que se torna difícil a pesquisa, o vencer da relutância de falar sobre os acontecimentos, a completa isenção das testemunhas ante um caso tão recente. Gostaria de ver nesta notícia um sinal de que caminhamos progressivamente, à semelhança da cultura anglo-saxónica, para a fixação em romance da nossa história recente - para quando uma grande, corajosa e assumida história sobre a Guerra Colonial? - e de certa forma um sinal de respeito da sociedade ante o acontecimento, por não deixar que seja esquecido, e contudo, a acreditar no artigo (e na extrema irresponsabilidade de frases-feitas de o «escritor pode permitir-se tudo» quando aplicadas a obras inspiradas em factos verídicos, em particular quando sabemos que este argumento não tem grande validade em tribunal) receio que a abordagem tenha sido afinal outra, que o escalpelo tenha sido aplicado não ao de leve mas à machadada, em suma, resultado de uma breve recolha de frases de jornalistas, uma colagem com pontuações, inícios de capítulo e preposições, juízos de tasca, e pronto, temos livro de ocasião...

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21 Julho 2007

UM PAR DE COMENTÁRIOS interessantes sobre a saga do jovem feiticeiro e da sua não tão jovem mas agora muito mais rica mãezinha. O primeiro do João, o segundo do David (e estamos de acordo com o facto de este relatar um episódio bem «mais aterrador»). Quanto a mim, que tive há pouco na mão um hardcover em inglês a quase trinta euros de escrita mediana e enredo (para mim) sem interesse, o episódio Potter tem sido seguido à distância, mais fascinado pela completa obsessão dos miúdos que de olhos brilhantes nos canais televisivos exprimem a emoção apaixonada pela vinda do novo livro (fossem assim os meus leitores...), e pelo completo delírio dos meios de comunicação que bebem até à última gota do cálice da banalidade (mas ajudam a vender livros, falassem eles assim dos meus...). Creio que o momento mais revelador foi, para mim, de sentar-me num café em Barcelona no início da década, quando o fenómeno ainda estava fresco, e observar um rapazinho (com os seus nove, dez anos?) completamente imerso nas respectivas páginas. Devorando-as com voracidade, com um prazer que, creio, só naquelas idades se sente. Se Rowling tinha alguma varinha mágica em casa com que abençoou a escrita banal, ainda bem que o fez. Aquele rapaz poderá nunca ler mais nada na vida, mas aquele momento de intensa entrega nunca o abandonará. Rowling terá uma audiência fiel até ao fim da vida - como o têm os Rolling Stones, os Pink Floyd, os Doors, os Queen... estão a ver o paralelo? Na verdade, trata-se de uma pergunta: se nesta época de excesso de oferta cultural e de tentativa de manipulação mediática para nos levar a comprar obras que não têm a mínima qualidade, o Harry não se terá revelado como um farol de sinceridade e força narrativa que cativou muito simplesmente a atenção do público? O problema do excesso de oferta é que o bom (que é pouco) dilui-se no ruído do mediano e do mau (que são avassaladores) e conduz à pobreza da escolha, e mesmo à sua desmotivação. Todos temos actualmente a capacidade de saber que este escreve como aquele, que escreve como o outro, ou que este livro sobre a segunda guerra foi comprado por alguém que comprou o outro livro sobre o Iraque... o que escolher, então, entre tantas mãos levantadas? Porque havemos de confiar na opinião daquele crítico, se pode estar influenciada pela pressão dos anunciantes ou por snobismo intelectual? Não é preferível seguir os comentários dos outros leitores na Amazon, supostamente desinteressados? Mas, esperem!, os leitores da Amazon já não são tão desinteressados assim, alguns procuram obter reconhecimento, outros são veículos de promoção do livro por parte das editoras... em quem confiar? Em quem confiar? Voilá, no pequeno feiticeiro. Voilá, nos Beatles. A razão está em descobrir e gostar? Eventualmente até se gosta - mas mais importante ainda, todos os outros gostam. Todos os outros falam. Todos os outros pergunta, Então já leste? Em tempos, em muito, mesmo muito tenra idade, fui compelido a assistir a um episódio do Homem-Aranha, RTP2, de que não gostava particularmente, em detrimento do dos Marretas, RTP1, que adorava, e que por pouca sorte eram transmitidos à mesma hora no domingo... No dia seguinte, falar-se-ia de isso na escola, e estava a ficar farto de não participar nas conversas. É possível que este tenha sido um momento decisivo na forma como condicionaria futuramente as minhas escolhas, pois não senti que participar na conversa e estar no grupo fosse tão recompensador quanto o prazer de assistir a algo que valia a pena... e dali em diante voltei a escolher os Marretas em todos aqueles (distantes, diferentes) domingos. Por isso entendo, mas não aceito totalmente, o seguir atrás da manada. Mas sei que muitos não pensam assim. As modas são um fenómeno compulsivo para os fracos de escolha. Ler é um acto solitário, a não ser que seja em voz alta. E Rowling, percebendo o facto, refugiou-se de forma discreta no espírito de autora e conduziu a obra (pelo menos, aparentemente) ao seu modo. Não teve receio de matar personagens no fim. Mas segundo me disseram, não mata o protagonista, para que possa regressar daqui a uns bons anos, quando os próximos livros não forem capazes de obter o mesmo nível de vendas e a editora a pressionar para voltar à saga. O dinheiro fala muito alto. O que admiro nela, no entanto, é a extraordinária capacidade de escrever ante a responsabilidade e a exposição. Porque tanto depende dela - tantos empregos, tantas apostas empresariais, tanto dinheiro empatado em grandes tiragens - e tantos gostariam de vê-la falhar, que é fabuloso como um simples bloqueio de escritor não lhe toma conta do braço. Escrever já é complicado quando somos pouco conhecidos... Veremos o que fará a seguir.

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