Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


19 Março 2023

Quando Waters se põe a balir durante os acordes de abertura de «Sheep» (Animals), a tão óbvia associação com os despojados da sociedade que nem requer explicação, confesso que me encolhi de constrangimento. Se por um lado, é admirável que um artista defenda as suas metáforas ao extremo, por outro, estando o magnífico ecrã suspenso repleto de ovelhas voadoras, aconselha-se um pouco de subtileza para ajudar à digestão. Que vida foi a tua, cantor, que te faz imitar um ruminante diante de milhares de espectadores em plena terceira idade? Bem, e depois surgiu o balão em forma desse animal a rodopiar sobre a plateia, dando uma volta completa ao recinto, e eis-nos mergulhados em pleno imaginário pinkfloydiano.

As legendas esclarecem que o álbum foi concebido em homenagem a Orwell. De facto, as referências aos porcos, aos cães e às ovelhas abundam, e ajudará ao entendimento algum contacto prévio com o Triunfo dos Porcos. Ouvi com interesse particular, por ser a primeira vez que retornava às composições desde que traduzira o livro para a Livros do Corvo (publicado durante o frenesi que se seguiu à entrada das obras em domínio público), e queria aperceber-me se a minha reacção mudara. Mas Waters optou pelas peças mais sinfónicas, e a mensagem esbateu-se. Considero Animals a segunda obra menos marcante da pentalogia final (após The Final Cut), e sobreviveu principalmente pela imagem icónica do porco sobrevoando a central eléctrica de Battersea. Sinto agora a falta de um tema dedicado ao cavalo Maciço.

Que temas políticos façam parte do arsenal de Waters não espantará ninguém. Por outro lado, que a sua abordagem seja superficial e demagógica, com fortes inclinações esquerdistas, é talvez o mais apropriado a um roqueiro: se Bono e Waters e Geldorf tivessem realmente um pendor estadista, fariam comícios e não espectáculos. Ainda assim, não se lhes pode censurar os idealismos, porque também os tivemos, quando éramos jovens e a música representava um estado de graça, uma forma de imortalidade perene, a que desaparece com o retorno do silêncio. Não mudámos o mundo como sonhado, pois este pesa e há (espanto!) quem empurre do lado contrário. Nós evoluímos para versões cínicas e desencantadas - ou desconfiadas das crenças -, mas as canções da nossa adolescência cristalizaram no tempo, obrigando os seus criadores a uma eterna rebeldia que, com a repetição, se mecaniza e nega a espontaneidade de nascença. Aquilo que This is not a drill nos oferece é uma reinterpretação - uma mudança subtil da mensagem de algumas músicas, insólita e inesperada por, precisamente, as modernizar, e neste processo, dar-lhes barbas e cabelos brancos, trazê-las novamente para a nossa beira.

A mudança começa a sentir-se logo ao início, quando Waters se senta ao piano colocado em palco e, exibido em grande plano pelas várias câmaras dispostas ao longo do perímetro sob o controlo magistral da regie, apresenta a sua proposta da noite: estamos todos juntos num bar. O que há num bar? Um espaço intimista em que nos podemos sentar, tomar um copo, conhecer pessoas e conversar. Falta-nos muito conversar, afirma aquele que, no início do espectáculo impôs com veemência, a quem discordasse das suas opiniões políticas, que «bazasse» do recinto («fuck off to the bar», para ser mais exacto. Roger says «fuck» a lot). E depois apresenta a primeira parte de uma peça nova, composta «durante o Covid», que integrará um futuro álbum. É Waters vintage, com as habituais diatribes sobre a insensibilidade da guerra («napalm com cornflakes»), a violência policial (com vários exemplos retirados da imprensa, ainda que limitados ao mundo ocidental, porque só nós é que somos maus), e a exploração pelos ricos (evocando o episódio dos Water Protectors em Standing Rock)... mas o tom tornou-se quase resignado, em vez da denúncia irada; qual síntese de si mesmo, nos temas e até nos acordes e na estrutura, cujo encerramento ilustra um posfácio, ou índice, do muito que já se disse. Eis um homem com uma missão, como diriam os seus conterrâneos.

Mas entretanto chega-nos a viragem insólita. Waters faz de Syd Barret o Moisés do seu percurso musical - foi ele quem lhe afastou as águas da dúvida, embora nunca visse a terra prometida -, e usa o ecrã multimédia para conversar conosco, contando uma história de origem, a de dois amigos com um grande sonho. E termina: «When you lose someone you love, it does serve to remind you: this is not a drill.» A música é, obviamente, Wish You Were Here.

Estamos assim perante um Waters contemplativo, sensível... manso? É difícil relaxarmos na presença de um urso, mesmo quando não ruge. Ausentes dos rol de fotografias, memórias, agradecimentos e menções, ficaram David, Nick e Rick, como se Pink Floyd fosse um sonho breve.

Não obstante, a percepção crescente é que estamos perante um espectáculo muito menos agreste e revoltado que o anterior, Us + Them - este, sim, menos rock que comício, excessivo e inclusive desagradável... tão desagradável que quase recusei repetir a experiência (e não fosse a idade avançada do artista, talvez optasse por ficar em casa). Imagino que Waters não ficou insensível às reacções intempestuosas que então despoletou, ou alguém próximo lhe bichanou ao ouvido que devia mudar de tom, que pensasse no legado, e ninguém atura velhos rabugentos. Lá tentará abordar o tema da Ucrânia - parecia mortinho por fazê-lo -, mas a mera crítica à NATO, perto do final, rapidamente o convence de que os portugueses não vão naquelas cantigas, e volta logo ao reportório para não estragar a magia da noite (não sei o que terá acontecido no espectáculo seguinte).

A cenografia é absolutamente espantosa, com um palco no meio do recinto, completamente cercado por público, em forma de cruz, sobre o qual pende um ecrã contínuo de igual formato. Neste, close-ups em tempo real dos vários membros misturam-se com uma sequência de imagens em que se completa e reinventa o tema das músicas. Se «Bravery of Being Out of Range» é Waters igual a si mesmo, conotando os presidentes americanos de recente data como criminosos de guerra, mas omitindo qualquer referência ao actual carniceiro dos Urais, já a nova versão de «Us + Them» torna-se um espantoso hino à diversidade, ao encher o ecrã de pessoas: rostos humanos. Desaparecem, a seguir, e dão lugar ao triângulo prismático de Dark Side of the Moon, que enche o recinto do chão ao tecto, meia dúzia de prismas de um lado ao outro do palco. Sobre o ecrã negro, surge um traço que o vai queimando como um laser, e que a seguir se transmuta: é agora batimento cardíaco, a seguir, muda de cor, duplica e triplica, forma um arco-íris, e por fim, desdobra-se em padrão xadrez multicolorido, no qual reaparecem os rostos. Uma evidente, e poética, expressão de união na diferença. O espectro da raça humana. E no entanto, canta-se «Brain Damage/Eclipse», há muito criada sob outro espectro, mensagem de alienação e loucura. Estão a gozar conosco? Mesmo na dúvida, as palmas são inevitáveis.

Retoma o triste «The bar». Explica demoradamente de que «roubou» dois versos a uma canção de Bob Dylan, e dedica-o à esposa. Ficamos também a saber que o irmão mais velho faleceu no início do ano - e quando surge a fotografia da família, vemo-lo como o sobrevivente final daquele pequeno núcleo, aquele que acabaria sozinho. Canta novamente sobre o episódio marcante da sua raiva, e consegue ser ainda mais pessoal do que anteriormente. O irmão chegou a conhecer o pai. «I was mercifully spared / Of the moments that they shared / 'cause I was only five months old when Daddy died». O ecrã cobre-se de fumo, apaga-se, também o cantor morreu.

Termina-se «outside the wall». Tal como o melhor álbum de sempre - mas este, o muro final, é intransponível. Resta apenas o legado, a memória, e a insistência da denúncia. «Some stagger and fall, after all it's not easy». Pois, mas como reconheceste atrás, «it's so easy to get lost, isn't it?».

Bem, regressaste, Roger. Mesmo se for por pouco tempo, e não por completo, ao menos uma parte de ti regressou. Já tínhamos saudades, artista.

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19 Fevereiro 2023

Se o pecado que podemos cometer com a grande literatura é de ignorá-la, quando surge, a sua virtude - ou inefável milagre - é o de conseguir renascer, qual semente que aguarda no solo gelado pelos raios anunciantes do Estio. Mas Stoner teve de esperar primeiro pela transposição da barreira da linguagem de modo a ressurgir em força, como merecia. Seria o outro lado da cerca menos inóspito? Que irónico uma obra americana que trata da paixão pelos livros e pelo conhecimento ter de receber da velha Europa o reconhecimento devido pela sua maestria. Porque é de paixões que este livro trata. O momento em que Stoner se apercebe do amor pela literatura é de uma beleza singular, descrita com precisão e pragmatismo. Tivessem os romances de cordel igual maturidade emocional... mas quem sabe se podemos sentir por um ser humano, alguém que se mexe, reclama, tem marés, padece de humores, muda com as estações, tanta intensidade de sentimento como a que nos desperta um texto escrito? Objecto talvez inanimado, imóvel, constante, mas também, que nunca se cala, que ressuscita ante a mais simples leitura, reagindo ao espaço e ao tempo com o mesmo fervor dos seus pares mais recentes, qual solução química exposta ao ar. Afinal, é eterno e não sabia. Haverá maior amor que o sentido pelas infinitas possibilidades dos parágrafos? Stoner mostra-nos que não. Banal foi a sua vida - excepto nos livros, e é com um livro que a dele termina, um livro nas mãos, sempre um livro nas mãos, a capa que se fecha, última página lida, um suspiro ausente. Na sua mundanidade, alcançou a glória. Deixando o personagem uma discreta marca, na forma de um par de obras de juventude, ligeiramente elogiadas, embora vincadamente ignoradas - contudo, quem sabe o que lhes acontecerá depois do final, na sequela que, espera-se, jamais se faça? Quem sabe que pós-vida terão, ainda que a vida dos livros só termine quando queimado o último exemplar? Devia Stoner ter sido um protagonista mais exigente, ambicioso, aventureiro? Acontece que a alma condiciona as nossas escolhas, e os caminhos que trilhamos são os da voz do narrador da nossa vida. Ele optou pelo enredo conhecido, porque quis descobrir o próximo capítulo, não desistir a meio. E depois, terminou, como todas as histórias. Como todos nós. Obrigado, John Williams, por apontares tão factualmente, mas de forma perfeita, aquilo que nos une. Nunca saberás que Stoner foi a tua Katherine. Mas ela voltou para nós. Sim, ela voltou.

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12 Fevereiro 2023

Para que serve o «Cânone»? Não, não questiono a necessidade de haver obras célebres, porque todos precisamos de referências, de pontos de encontro, nem que seja para melhor nos desentendermos, mas, sim: para que serve a edição da Tinta da China, assim denominada? E porque motivo (que não o provocativo para chamar a atenção e ganhar uns cobres - falo de motivos literários legítimos) teve este título? Se a própria introdução avisa que «(...) não vale a pena procurar nele o cânone da literatura portuguesa», não seria mais apropriado chamá-lo «Não o Cânone»? Mas, se o é, porque é o nome que lhe deram, será esse fantasmagórico cânone o dos autores de quem aqui se fala, ou os autores que aqui daqueles falam? E quem os escolheu, a uns e a outros? Menos claro: a quem se destina o livro? Para leitores que deviam conhecer, à partida, todos os autores aqui debatidos? Não terá sido para descobri-los que, precisamente, esse leitor terá adquirido o livro? E porque motivo somos lançados, em certos episódios, no meio da selva, em contra-insurreições de guerrilha antes de conhecermos sequer os lados e os ideais? Afinal, havia guerra? A importância de Herculano é medida pelo que Teófilo pensava dele? E porque há-de ser Teófilo uma autoridade nessa matéria? Não convém perceber, primeiramente, quem foi Herculano - o que comia, o que vestia, se arrotava após a ceia? Que documentário ignorámos, que podcast nos passou ao lado? Ficaram-se as orientações editoriais pelo caminho? Não merecia o Jorge de Sena melhor sorte - uma primeira introdução à sua obra e preocupações, antes de ouvirmos as suas lamentações pela presumida falta de reconhecimento em vida? E defendê-lo com excertos dos seus textos, que o artigo sobre Espanca, apesar de resvalar para igual pecado, ao menos aplica como redenção? Sejamos justos: porque não usar textos de todos estes autores, juntá-los no palco, conceber um livro polifónico, apaixonado, em que cada qual defende, como sabe e pode, o seu talhão? Faz sequer sentido discutir as indiferenças coevas de obras que sobreviveram à morte do autor, sabendo que de outras, talvez então populares, não se fala? (Fernando Namora, anyone?) Se quaisquer discussões sobre cânones pretendem criar mais perguntas do que respostas, eram estas as perguntas que queriam despertar? E para concluir, podemos, por favor, ter um livro apenas com artigos do Miguel Tamen, dos poucos que, aqui, brilharam como pérolas - infelizmente breves - de equilibrismo entre sabedoria e sensatez, articulando perguntas difíceis e essenciais sobre a literatura, e alguns dos seus atletas, com a leveza aparente de que só os mestres são capazes?

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28 Janeiro 2023

Eis a primeira resenha do ano, numa leitura que não despertaria interesse, se não tivesse escutado uma palestra do autor no último festival de FC em Avilés. Obra e criador são dois seres irmanados, mas não realmente gémeos, sendo a primeira fruto de um necessário compromisso entre vontade e capacidade, uma negociação de caminhos, e o segundo moldado por tudo o que se lhe impõe, como a sociedade, a condição humana, a vida. E contudo, ditadores e outros quejandos sempre tenham procurado calar a obra pelo amaldiçoamento de quem a fez, com a habitual justificação de uma pureza do pensamento (técnicas apropriadas entretanto pelas polícias colectivas dos supostos bons costumes, e de quem lhes dá ouvidos e autoridade). Que a associação com ditaduras tenha sido tão imediata revela, talvez, o cancro óbvio que assombra a Utopia descrita em Ceifador. Tradução de uma série juvenil (por moda, dizemos agora jovem-adulto, mas o que é este, realmente, senão um adulto pleno que ainda não se cansou de o ser?) em que os seres humanos vivem para sempre, por obra e graça de uma medicina milagrosa que tudo repara (cair de um arranha-céus é tão irrelevante quanto fazer um golpe no dedo, e até se desperta com memórias intactas!), arriscando, portanto, esgotar os recursos da Terra e encher o planeta de membros desta espécie teimosa. A solução para o excesso populacional? Ora, é tornar as pessoas voluntárias à força no jogo da extinção pessoal - por outras, palavras, matá-las. Entra em cena uma casta de assassinos que dita o fim dessa medicina milagrosa capaz de recuperar o corpo, nas vítimas por si escolhidas. Agindo sob um sistema de quotas, esta premissa faria as delícias de qualquer assassino em série - ou não, talvez a obrigação transformasse um hobby em trabalho, tirando-lhe o gosto... Os praticantes dessa Ordem chamam-se Ceifadores, e a prática da ceifa, uma colheita - opções de tradução adequadas e que ficam na memória. A História atribuiu-lhes imunidade praticamente total, pois matar ceifadores é punível com uma colheita imediata, a não ser que estes se suicidem. Mas até isto acontecer, são obrigados a ir matando sem piedade.

O que dizer desta premissa? Para começar, é uma interpretação curiosa, e bastante cínica, dos futurismos juvenis que se multiplicaram nas últimas décadas, apresentando-nos o que LeGuin chamaria de utopia ambígua: a perfeição com odor fétido. É um futuro particularmente sádico, e possivelmente traumatizante, pois a morte de um amigo ou familiar, se causada por mão humana e escolha deliberada (em vez de ser uma característica inevitável da vida), deixaria marcas na sociedade - aliás, o pavor de quem se cruza com um Ceifador é repetidamente descrito. Estamos perante um custo obrigatório sem contrapartida imediata, apenas uma abstracta promessa de eficiência, tal como o pagamento de um imposto... sendo o causador da morte conhecido, caminhando impune e em liberdade, e capaz de vingança se contrariado. Um preço demasiado alto - parece-me - para a aceitação de uma existência imortal, criando elites que a negam. É de admirar que não se ergam vozes dissidentes (ou ficou a revolta relegada para os próximos episódios?).

O enredo centra-se na educação de dois jovens escolhidos para aprenderem estas artes, uma vez que se ingressa nas fileiras por convite e mérito; ambos terão de sobreviver às provações daquela vida e engolirem a mentira - que colher é um acto humano e justo - que sustenta a sociedade. Eis a consequência óbvia: a actividade atrairia psicopatas, que aqui se retratam como sendo os Ceifeiros que colhem vidas alheias com prazer e para ganhar poder e fortuna - e o fazem também de forma colectiva, em espaços públicos, como forma de espectáculo. Perversamente, o livro faz-nos crer que este acto é menos humano que a eliminação do indivíduo isolado, como se esta escolha não se entenda mais pessoal. E tanto mais perverso é, que as mortes acontecem de forma brutal, com dano físico, em vez da pacífica eutanásia adoptada em Soylent Green.

É impossível concluir a leitura sem sentir um gosto amargo, não obstante a simplicidade da escrita que faz passar páginas com facilidade. Shusterman sabe o que faz, sendo este o primeiro de uma trilogia. Numa era em que tanto se fala de saúde mental, esperemos que os habitantes deste mundo encontrem paz de espírito.

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16 Janeiro 2023

Após o final da gravação, em curta mas amena cavaqueira, lá acabei por perguntar ao Brian Jay Jones se ele teria omitido alguma passagem controversa da vida do Lucas, uma vez que o sujeito em causa era tão «bem comportadinho». Aparentemente, o tema mais vincado da personalidade em questão é precisamente o controlo, a necessidade de estar ao leme, o que, para um autor, não é minimamente polémico, mas a norma. Também aqui a necessidade, para o biógrafo, de manter o interesse, quer o da sua pesquisa quer o da leitura alheia. O primeiro filme da Guerra das Estrelas - ou Guerras Estelares, se quisermos traduzir à letra - teve um desenvolvimento caótico, mas se o resultado acabou por ser revolucionário foi sem dúvida também pela conjugação dos talentos de outros, um dos quais a própria esposa, Marcia, experiente em montar os filmes de Scorcese e, segundo o livro, tendo feito vários contributos essenciais (a morte de Obi-Wan, o conflito final, a navegação pela trincheira da Estrela da Morte) que deliciaram plateias mundiais no ano impossivelmente distante de 1978 (e que merecia ser biografada por mérito próprio). Já disse e repito: o primeiro episódio é um grande filme com uma péssima história - e ainda assim, toca uma série de acordes emocionais básicos que deixaria o seu charme num rapaz de oito anos. Por muito que agora saiba relativizar o fenómeno, a verdade é que cada novo filme da saga (e só deixei passar o Império, que vi depois do Regresso, e não fiquei impressionado) definia a vanguarda dos efeitos especiais. A obra em questão apresenta Lucas visto de fora, uma vez que o próprio negou acesso directo ao biógrafo e, portanto, tornou o projecto «não autorizado», com o seu quê de intimidatório, pois aborda um multimilionário em vida que tem um particular gosto por controlar tudo (este comentário estará na entrevista). No entanto, é uma pena que não se tenha podido abrir a cortina, e entender as influências principais do primeiro filme (há quem alegue um decalque de Kurosawa, o que, por mim, me parece uma influência excelente para uma space opera). De entre as curiosidades reveladas (que Harrison Ford podia ter seguido uma carreira de carpinteiro, por exemplo), espantou-me descobrir que o principal segredo do enredo - o Darth Vader ser pai do Luke - não constava das ideias iniciais, uma vez que, para mim, e para o meu pai, que me levou à estreia, a relação adivinhava-se à distância, por ser tão óbvia naquele tipo de filmes (sim, percebi-o naquela idade). O livro é agradável de ler, e quando entra nos capítulos dedicados aos filmes, ganha ritmo - o próprio Brian admitiu que estruturou o texto com truques de ficção, para manter o interesse. E para todos os efeitos, é um fenómeno do nosso tempo.

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24 Dezembro 2022

Na época festiva, há por hábito dar prendas, e aqui não se foge ao preceito. O Natal, tal como hoje se conhece, pode assumir a forma de um evento cultural transnacional, afastado das suas origens e indiferente às condições de cada região (por exemplo, as diferenças de estação entre hemisfério norte e sul), mas nasceu de uma celebração à mudança dos dias e à viragem da precessão celeste que se deve exclusivamente à nossa dança em volta do Sol e do próprio planeta - aliada aos efeitos secundários no clima. O Natal tem, portanto, uma natureza intrinsecamente ligada com a Ficção Científica. Daí que seja mais do que adequado celebrá-lo dessa forma, para o qual vos remeto a um conto antigo. Sim, «Também Há Natal em Ganimedes» já tem barbas, mas sobrevive, agora numa versão mais composta, com ligeiras alterações para esclarecer ideias e suavizar atropelos de linguagem que enfermavam o estilo de um certo rapaz inexperiente. É um texto algo delicodoce, admito, principalmente na conclusão, mas ter de encher o mínimo de páginas necessárias para concorrer ao prémio Caminho, bem como fazê-lo em cima do prazo, condicionou a que fosse colhido à pressa, sem tempo para maturar. Foi dos últimos contos a incluir no manuscrito, quando percebi que as alternativas melhores não ficariam concluídas a tempo. Ainda assim, é bem disposto, e repudia a tragédia que facilmente se vislumbra no horizonte, em termos narrativos, para a simpática família retratada (o andarilho escapou da sua rota planeada? E pode danificar ou comprometer o funcionamento de um habitat humano? Hmmm...) Também me espantou descobrir depois esta antologia americana com igual nome - teria eu esbarrado antes com tal título, e este ficou dormente no meu subconsciente? A coincidência é espantosa, mas Ganimedes parece ter sido um local atraente para situar certo tipo de histórias. Faz de conta que honra uma certa tradição, e enquanto não o visitamos em presença, deleitemo-nos com estes olhares conhecedores. Feliz Natal!

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18 Dezembro 2022

Sobre a escrita de cenas de acção - uma das perguntas da entrevista feita pelo Bruno à qual dei a resposta que podem ler aqui (assinem a newsletter!) -, eis um exemplo inteligente de como integrar enredo, envolvimento emocional e coreografia física. Trata-se também de uma história de fantasia cujos elementos fantásticos são usados como tempero, para dar um sabor intrigante, ainda que não sejam fundamentais para a sua confecção (por outras palavras, a história manteria a narrativa essencial se todas as referências ao «outro mundo» fossem extirpadas ou substituídas por alternativas mais banais). Neste caso, poderemos realmente classificar esta história como fantasia? Uma discussão que se alongaria noite dentro...

Destaque também para alguns comentários da autora na respectiva entrevista que acompanha o conto (negrito meu): «Rather than my characters behaving in unexpected ways, I struggle most with their inclination towards inaction. (...) I spend a truly horrible amount of time trying to wrench the plot around to force them into action despite the risks and consequences that they’re afraid of Uma abordagem narrativa que é, não só contrária à apetência tradicional da ficção popular pelo movimento, como utiliza a acção como forma de resistência, e sabemos nós que é pela resistência que as personagens mais se revelam. Procurem estar atentos a estas pérolas de sabedoria, mais preciosas e económicas do que muitos cursos de escrita criativa.

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