28 Janeiro 2023
Eis a primeira resenha do ano, numa leitura que não despertaria interesse, se não tivesse escutado uma palestra do autor no último festival de FC em Avilés. Obra e criador são dois seres irmanados, mas não realmente gémeos, sendo a primeira fruto de um necessário compromisso entre vontade e capacidade, uma negociação de caminhos, e o segundo moldado por tudo o que se lhe impõe, como a sociedade, a condição humana, a vida. E contudo, ditadores e outros quejandos sempre tenham procurado calar a obra pelo amaldiçoamento de quem a fez, com a habitual justificação de uma pureza do pensamento (técnicas apropriadas entretanto pelas polícias colectivas dos supostos bons costumes, e de quem lhes dá ouvidos e autoridade). Que a associação com ditaduras tenha sido tão imediata revela, talvez, o cancro óbvio que assombra a Utopia descrita em Ceifador. Tradução de uma série juvenil (por moda, dizemos agora jovem-adulto, mas o que é este, realmente, senão um adulto pleno que ainda não se cansou de o ser?) em que os seres humanos vivem para sempre, por obra e graça de uma medicina milagrosa que tudo repara (cair de um arranha-céus é tão irrelevante quanto fazer um golpe no dedo, e até se desperta com memórias intactas!), arriscando, portanto, esgotar os recursos da Terra e encher o planeta de membros desta espécie teimosa. A solução para o excesso populacional? Ora, é tornar as pessoas voluntárias à força no jogo da extinção pessoal - por outras, palavras, matá-las. Entra em cena uma casta de assassinos que dita o fim dessa medicina milagrosa capaz de recuperar o corpo, nas vítimas por si escolhidas. Agindo sob um sistema de quotas, esta premissa faria as delícias de qualquer assassino em série - ou não, talvez a obrigação transformasse um hobby em trabalho, tirando-lhe o gosto... Os praticantes dessa Ordem chamam-se Ceifadores, e a prática da ceifa, uma colheita - opções de tradução adequadas e que ficam na memória. A História atribuiu-lhes imunidade praticamente total, pois matar ceifadores é punível com uma colheita imediata, a não ser que estes se suicidem. Mas até isto acontecer, são obrigados a ir matando sem piedade.O que dizer desta premissa? Para começar, é uma interpretação curiosa, e bastante cínica, dos futurismos juvenis que se multiplicaram nas últimas décadas, apresentando-nos o que LeGuin chamaria de utopia ambígua: a perfeição com odor fétido. É um futuro particularmente sádico, e possivelmente traumatizante, pois a morte de um amigo ou familiar, se causada por mão humana e escolha deliberada (em vez de ser uma característica inevitável da vida), deixaria marcas na sociedade - aliás, o pavor de quem se cruza com um Ceifador é repetidamente descrito. Estamos perante um custo obrigatório sem contrapartida imediata, apenas uma abstracta promessa de eficiência, tal como o pagamento de um imposto... sendo o causador da morte conhecido, caminhando impune e em liberdade, e capaz de vingança se contrariado. Um preço demasiado alto - parece-me - para a aceitação de uma existência imortal, criando elites que a negam. É de admirar que não se ergam vozes dissidentes (ou ficou a revolta relegada para os próximos episódios?).
O enredo centra-se na educação de dois jovens escolhidos para aprenderem estas artes, uma vez que se ingressa nas fileiras por convite e mérito; ambos terão de sobreviver às provações daquela vida e engolirem a mentira - que colher é um acto humano e justo - que sustenta a sociedade. Eis a consequência óbvia: a actividade atrairia psicopatas, que aqui se retratam como sendo os Ceifeiros que colhem vidas alheias com prazer e para ganhar poder e fortuna - e o fazem também de forma colectiva, em espaços públicos, como forma de espectáculo. Perversamente, o livro faz-nos crer que este acto é menos humano que a eliminação do indivíduo isolado, como se esta escolha não se entenda mais pessoal. E tanto mais perverso é, que as mortes acontecem de forma brutal, com dano físico, em vez da pacífica eutanásia adoptada em Soylent Green.
É impossível concluir a leitura sem sentir um gosto amargo, não obstante a simplicidade da escrita que faz passar páginas com facilidade. Shusterman sabe o que faz, sendo este o primeiro de uma trilogia. Numa era em que tanto se fala de saúde mental, esperemos que os habitantes deste mundo encontrem paz de espírito.