e a sua relação com as antologias que seleccionam anualmente os melhores contos e noveletas publicados no ano anterior reflecte, até certa medida, o equilíbrio difícil da existência na Península das várias comunidades autóctenes antes da chegada dos romanos: conturbada, independente, e de difícil consenso. Os romanos trouxeram a paz e harmonia, forçando o jugo imperial de uma única administração, economia, sistema tributário e língua aos vários povos ibéricos, tal como estas antologias pretenderam traçar um caminho na multiplicidade de histórias e tendências com que cada numero de cada revista ou colectânea vem agitar as águas da FC.Decerto que dos romanos não teria sido a solução da Comunidade Europeia, nem possivelmente veriam com bons olhos a necessidade de efectuar compromissos com outros povos e não haver liderança bem definida. E de facto, durante a sua existência, a Península passou por um período focado de crescimento e prosperidade. E estava demasiado longe da capital de império para se preocupar muito com um apertado controlo administrativo. Aliás, a condição isolada da Península viria a afectar inclusivé os árabes, séculos mais tarde, a tal ponto que foi necessário o envio de uma delegação do norte de África para repor a cultura no «bom caminho»...
A hegemonia parece ser uma condição sine qua non das sociedades humanas, e isso sente-se até na determinação do que é, anualmente, o melhor que se publica em termos de fantástico internacionalmente.
Aqui a hegemonia é sem dúvida norte-americana, e para sermos específicos, mais estado-unidense que canadiana. Todos os anos é publicado um conjunto de volumes que proclamam defender, sob determinados critérios, o que consideram ser os melhores contos e narrativas curtas publicadas no ano anterior - em inglês, obviamente, e apenas as que chegaram às mãos dos editores respectivos.
De longa data, uma das mais imperiosas, em todos os sentidos, tem sido a de Gardner Dozois, que em 2007 chegou ao volume 24. Densa, gigantesca (700 páginas em letra miudinha), tem-se imposto como a única antologia capaz de apresentar uma apreciação lata do género, em particular nas categorias de noveleta e novela, algo com que as restantes, de menor dimensão, não são capazes de competir. De igual forma, Dozois, durante décadas editor da revista Asimov's antes de a abandonar por alegado cansaço, tem marcado o género com o seu gosto peculiarmente literário, com grande ênfase no estilo e do desenvolvimento dos personagens, ao invés da história limitada a discursar sobre engenhos e invenções - por outro lado, a ciência e o racionalismo marcam presença forte, e na medida do possível, é ficção científica, e não fantasia, o género mais definido e vincado nas histórias seleccionadas.
O que não significa que a qualidade seja uniforme. Ou pelo menos, que a ficção curta, até certa medida, não esteja em crise enquanto veiculo para contar histórias interessantes, especulativas, emocionais ou perturbadoras - e quando falo em crise, não é do formato em si, mas do respeito que os autores lhe têm dado, nesta época de romances e trilogias épicas de milhares de páginas, e de histórias pouco originais.
Das quatro últimas histórias do Year's Best deste ano (porque uma forma diferente de abordar um livro grande é subvertê-lo e começar do fim, desfazendo a orientação subliminar que o antologista teria colocado na ordenação das histórias), apenas uma se destaca como tendo merecido a selecção neste conjunto, e eventualmente sequer a publicação em livro. As restantes deixam muito a desejar.
«Nightingale» é uma novela de Alastair Reynolds, na qual, num universo traumatizado por séculos de guerra, um conjunto de mercenários são convocados para resgatar um dos maiores crimonosos de guerra de uma nave-curandeira. Quer o criminoso quer a própria nave eram considerados perdidos ou destruídos, até recentemente ter sido descoberta a verdade. A missão é então uma de justiça e vingança: descobrir a nave-curandeira, forçar as suas defesas, penetrar no interior e retirar o criminoso para o levar perante os tribunais - ou acabar com ele, se não for possível.
Uma história que nos faz lembrar do impacto emocional do Heart of Darkness, ou da excitação do filme Aliens, certo? Uma incursão perigosa num território desconhecido, onde as surpresas são fatais e a desatenção pode comprometer o objectivo. Material para uma grande história, semeada com algumas interrogações sobre a natureza da Besta e do seu rosto...
Infelizmente, Reynolds não consegue lidar com a promessa do material, recorrendo a uma prosa sensaborona, à pouca imaginação dos desafios e dos perigos colocados à expedição, a uma completa falta de engenho na condução de uma história de suspense, e terminando tudo com um desfecho pouco convincente. A tal ponto que durante a leitura, ocorreu-me continuamente como aquele cenário, seria material para a concepção de um filme bastante interessante, mas com uma história diferente, bem escrita. Aparentemente esta história baseia-se fortemente no universo do ciclo Revelation Space do autor, mas se ter conhecimento deste melhora a experiência da mesma, não esconde o facto de que, isoladamente, não funcionar como devia.
«The Town on Blighted Sea» de A. M. Dellamonica não melhora a sensação, e num cenário de convívio entre humanos e terrestres, de novo perturbado pelos traumas de de pós-guerra, apresenta uma história de assassinato e prazeres ilegais que parece saida de um filme do Steven Seagal.
«Every Hole is Outlined» decorre numa nave de transporte de mercadorias capaz de sobreviver a gerações de tripulantes, quase como se fosse um mundo isolado. Neste universo a escravatura voltou a ser uma opção vigente em determinados planetas, e por virtude do falecimento da companheira do matemático da actual tripulação, ele próprio já de idade avançada e necessitando de passar os conhecimentos a outro elemento, decidem adquirir uma escrava num dos mercados e convencê-la a trabalhar enquanto companheira dele em troca da sua liberdade. O segredo do matemático é que vê fantasmas (sim, fantasmas) a bordo da nave, e em breve ela também os vê. Saltando de cena em cena sem qualquer traço de emoção, eis uma história que se queria emotiva e sentimental, mas que foi escrita com o lado racional do cérebro. John Barnes, pela sua experiência como semiótico, consegue traçar universos estranhos e diferentes do nosso, mas talvez porque segue o raciocínio e não a intuição, estes universos nunca chegam a ser realmente perturbadores e interessantes. Ou então é incapaz de contar uma história. De qualquer forma, mais uma leitura que não acrescenta nada à vida.
Um pouco de redenção surge finalmente com «Okanoggan Falls», de Carolyn Ives Gilman. O que parece ser mais uma história sobre uma invasão alienígena e o trauma do pós-guerra, em particular quando os alienígenas decidem eliminar um punhado de vilas do interior dos EUA para seus próprios fins (um resort de areia, como descobrimos mais adiante) torna-se subtilmente (embora perca bastante da originalidade quando começa a copiar elementos das Pontes de Madison County) numa versão muito feminina de um contacto humano com um extraterrestre. Salpicado com as banais considerações de uma mulher casada de como em muitas formas um marido é semelhante a um ET, a força do conto encontra-se na descrição da vida rotineira de uma pequena vila americana e de como é forçada a reagir às mudanças impostas pelo mundo exterior - e consegue, por momentos, o difícil feito da suspensão do descrédito quando apresenta a perspectiva do outro face ao nosso mundo, à nossa espécie, aos nossos corpos. O final não representa uma conquista com explosões e domínio de poder, mas uma conquista do sentimento, uma mudança de perspectiva - é, neste sentido, um fim absolutamente feminino, e nele revela-se a verdadeira história.