Muito se escreve (lá por fora, embora a net nos faça sentir que estamos todos cá dentro) sobre a renovada Battlestar Galactica, e sobre como - num exercício de re-escrita que, por si só, merecia um estudo apurado sobre a evolução da sensibilidade cultural (desde os anos 80 quando a série original estreou) às questões da mudança tecnológica e da fantasia científica no nosso imaginário - esta veio demonstrar um respeito inesperado e para alguns inédito relativamente ao género da ficção científica. Não creio que este tema seja de abordagem ligeira, e se de facto tenho coibido em pronunciar-me, é precisamente por falta de tempo para organizar devidamente a apreciação crítica e, obviamente, evitar repetir o que outros já disseram (e bem).Contudo, ao retomar o visionamento da segunda temporada, que por vários motivos - entre os quais saturação face às decisões imbecis ou cobardes de vários aspectos do enredo - coloquei de parte durante meses, não posso deixar de salientar um comentário sobre a necessidade da exactidão do detalhe neste género literário.
Antes de mais, é certo e sabido que os autores são humanos (ou grande parte deles, pelo menos), e que como tal, falíveis e passíveis de erro. Duvido que seja possível deter-se conhecimentos pormenorizados em inúmeras disciplinas - a especialização é mais comum e eficiente na nossa sociedade, sendo que daqui surge o evidente benefício do trabalho em equipa, e deste a necessidade de se terem desenvolvido linguagens para comunicação entre os membros. Logo, que os autores falhem pormenores no decurso do processo de construção de um território literário é desculpável - em particular se se tratam dos territórios imaginados da FC, aqueles que requerem mais esforço de criação pois não existem na vida real nem em documentos históricos. Contudo, que esses autores não tentem procurar um nível mínimo de exigência, e que os leitores/espectadores nem sequer se sintam desrespeitados por esta evidente lacuna, é algo de muito perigoso na FC.
Um caso muito particular no enredo da série: supostamente, os Cylons, arqui-inimigos da seita da humanidade que habita aquela região do espaço, organismos cibernéticos por excelência, têm uma capacidade natural de penetrar nas defesas informáticas das naves de batalha e comprometer o funcionamento correcto da tecnologia; por esta razão, o comandante da Galactica terá em tempos tomado a precaução (perfeitamente razoável no contexto em causa, e uma decisão inteligente por parte dos guionistas) de equipar a sua nave com tecnologia antiga, não ligada em rede (ou seja, não há comunicação automática de informação entre os mecanismos de computação), impedindo ou dificultando os Cylons de, a partir de um único ponto de acesso, conseguirem desligar todos os equipamentos. De imediato, conseguimos correlacionar esta experiência com a internet e de como os vírus, provenientes de parte incerta, podem destruir toda a informação do computador que temos em casa - a metáfora resulta imediatamente e de forma simplificada (um romance teria de ser mais exigente com esta premissa, mas trata-se de televisão e há que adequar as expectativas).
Contudo, a seguir, por uma necessidade de enredo (obter maior capacidade de computação no mais curto espaço de tempo) resolve-se ligar em rede os diversos computadores da nave, mesmo que temporariamente. Receios de penetração pelos Cylons começam de imediato a ser proferidos, e a banda sonora acelera na sua função de puxar pela adrenalina (como é que seria a vida se fossemos acompanhados por uma banda sonora pessoal a todos os instantes?... mas divago...). E de facto, mal os computadores são conectados em rede, os Cylons percebem de imediato, e quer personagens quer espectadores passam momentos angustiantes numa luta contra o tempo a tentar impedir que os malvados ciborgues invadam os computadores da Galactica antes de se ter conseguido o objectivo.
O que está de errado? Façamos um salto neste argumento para uma analogia, em benefício dos leitores menos familiarizados com aspectos técnicos:
Imaginemos que estamos numa casa, e esta casa tem vários quartos, ligados por corredores. Em cada quarto, que é um computador, existe um conjunto de pessoas (os elementos processadores de informação), que estão isolados uns dos outros, porque as portas encontram-se fechadas, à excepção de portinholas por onde são passados papéis com pedidos de informação, os quais são lidos pelas pessoas em causa, respondidos e devolvidos à procedência. As pessoas não podem sair dos quartos nem comunicar livremente umas com as outras. Esta é a Galactica na situação inicial, com sistemas autónomos, não ligados entre si. A informação é trocada de forma totalmente controlada pelos agentes humanos, os únicos com autorização para percorrer os corredores.
Imaginemos agora que vamos abrir as portas. De imediato, os conjuntos de pessoas dispersam-se, começam a invadir os corredores, fazem perguntas e obtêm respostas mais rapida e intensamente, numa conversação fluida. É mais fácil e fiável resolver problemas desta forma, apenas porque há mais gente a pensar a maior velocidade. Esta é a Galactica com os sistemas ligados em rede. Mas não há, mesmo assim, ameaças dos Cylons... sabem porquê? Ninguém abriu a porta da rua. E eles continuam lá fora, inócuos.
Uma Galactica com os sistemas em rede funcionaria como uma casa onde as portas da rua se manteriam fechadas, as janelas bem tapadas, para ninguém entrar... mas internamente, os sistemas poderiam falar aberta e livremente uns com os outros sem medo de ameaças. Obviamente que a situação não se deveria manter muito tempo, pois dado o número de espiões inimigos, um sistema mantido em rede corria sérios riscos de ser eventualmente, com o tempo, penetrado. Mas por dez minutos, o tempo suficiente, no episódio em causa, para resolver um problema de computação, seria perfeitamente razoável, e isento de perigo, optar pela ligação dos sistemas, em particular se ajudaria a nave a obter conhecimento imprescindivel para a batalha...
Quando apresentei este argumento a alguns conhecidos (pessoas informadas e conhecedoras do género), a opinião foi de tratar-se de um mero pormenor, e que possivelmente haveria razões não explicadas no argumento para isto acontecer. Pois, conheço bem essas razões: preguiça dos autores em informarem-se devidamente acerca de uma tecnologia moderna e de fácil apreensão, e optarem pela via sensionalista da ameaça eminente e improvável.
Isto é lamentável só por si. Ainda mais lamentável, contudo, é o seguinte argumento complementar, que surge nas mesmas conversas: pormenores como este não deviam estragar a apreciação global da série. Infelizmente, estragam (a bem da verdade, não foi só este, mas outros piores...). Nem se trata de uma questão de defesa do género da Ficção Científica, mas de qualidade da escrita. Porque a regra de ouro é esta: todos os momentos-chave do enredo devem assentar em premissas claras e, se não explícitas, pelo menos sugeridas no contexto da própria história. A má compreensão pelos autores de como funciona uma rede de computadores apenas se torna grave porque faz surgir um problema onde, se aquele mundo fosse real, não existiria - e este problema condiciona as decisões dos personagens, cria um acto de angústia e perigo... mas completamente falso e desprovido de sentido, pois é tudo resultado de ignorância, e daqui resulta uma história mal contada, o grande pecado de qualquer acto de criação. E quando isto acontece, torna-se impossível acreditar na verosimilhança dos acontecimentos, quebra-se o delicado contrato autor-leitor.
Não faz mal errar, desde que o erro não afecte a estrutura da história. Porque uma coisa é enganar-se nas designações dos parafusos dos tabuleiros da ponte... outra coisa é desconhecer que as pontes precisam, se não de pilares, pelo menos de algumas vigas de suporte e pontos de apoio e contrapeso... se se quer chamá-la de ponte...
O mundo real é tramado.