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Luís Filipe Silva - Novela | 05 Set 2013
- É alguma rasteira? Depende do material, obviamente – respondeu ela, intrigada. – Não lhe sei dizer de cor, é para isso que temos inventariação automatizada.
- Claro que têm. E essa inventariação emite ordens de serviço que os seus técnicos cumprem à risca, certo?
- Tenho a maior confiança no meu pessoal – disse ela, sentindo subitamente o contrário do que afirmava.
- Bem, espero que tenha razão...
Continuaram a avançar pelo corredor. Quando surgiu nova bifurcação, Carlos não aguardou que Sandra lhe indicasse o caminho mas optou por si mesmo. Soltando uma imprecação muda, esta seguiu-o, pois ele escolhera correctamente. Ansiava por tirar a ardósia do bolso e consultar os registos, mas não lhe ia dar esse gosto. Além de ter a certeza que, se algum prazo tivesse ficado por cumprir, teria aparecido no seu relatório diário.
O corredor era curto e rapidamente deu lugar a outros mais estreitos, à maneira das ligações entre veias e capilares. Sinalefas nas bifurcações informavam sobre volumes aceitáveis e comprimento. Eventualmente chegaram à intersecção pretendida. Estavam já no exterior da nave, fora da camada protectora do casco, e o túnel estava, por esse motivo, dimensionado para a passagem de uma pessoa num sentido. A porosidade rugosa era substituída por placas lisas e consistentes, compostas por camadas de ouro e chumbo, cujo papel na defesa das partículas energéticas que assolavam a órbita circunterrestre não podia ser mais fundamental. Não era das passagens mais frequentadas, e de facto, Sandra não se lembrava sequer de alguma vez ter passado por ali quando precisava de atravessar a nave, preferindo os caminhos interiores. A sua mente corria velozmente, procurando lembrar-se em que parte da anterior troca de correio fornecera pistas para tanta desconfiança.
A meio do corredor, e como era norma, existia um depósito fechado contendo ferramentas para fins de socorro, desde comunicadores portáteis a ferros de soldar no vácuo e os indispensáveis fatos espaciais.
- Abra, por favor – pediu ele. Ela inseriu o curto código e tirou do casaco de velcro o porta-chaves que trazia pendurado ao pescoço. Se fosse declarado estado de emergência, o depósito abrir-se-ia a um simples toque; até lá, apenas três pessoas tinham os meios para destrancar a porta.
O compartimento era bastante pequeno, embora tivesse amplitude suficiente para permitir a trabalhosa tarefa de vestir um fato de vácuo. Apenas um de cada vez, bem entendido – implicava entrar de costas e, somente pela orientação do toque, enfiar as pernas pela metade inferior, dobrar o corpo e usar cordas de assistência para puxar a metade superior pela cabeça e tronco, e selar, no final, as mangas e luvas. O que seria complicado na superfície terrestre tornava-se impraticável em gravidade zero para quem não tivesse um mínimo de treino. Considerando que as situações para as quais fora concebido aquele depósito eram acompanhadas por alarmes insistentes, uma possível queda de pressão atmosférica ou mesmo uma falha na renovação de ar que impedisse a acumulação de dióxido de carbono proveniente da respiração, não havia forma de aquele material constituir garantia de sobrevivência para os impreparados.
Sandra apontou para o inventário afixado no interior da porta, indicando o conteúdo do depósito, as respectivas quantidades e, de forma bem visível, a data da última vistoria, que remontava ao mês anterior.
- Como pode ver, os procedimentos foram devidamente cumpridos – pegando na cintura do fato mais próximo, expôs a anilha de cera vermelha, que representava o selo de fábrica. – Este nem foi sequer usado.
- Não são os fatos que me preocupam. Quantos depósitos de ar devíamos ter?
Sandra olhou para a folha de inventário.
- Quatro.
- Então, porque é que temos apenas três?
Ela olhou para a prateleira superior. Quatro rectângulos verticais desenhavam-se na perfeição no encaixe adequado para aquele tipo de depósitos.
- Está a brincar comigo?
Agarrando-se à barra de apoio sobre a porta, Carlos destrancou um dos depósitos, o terceiro a contar da esquerda. O que tinha a cor ligeiramente mais escura. O depósito desceu, a flutuar, até ao nível deles. Deu-lhe um ligeiro toque com o dedo, colocando-o a rodopiar com extrema facilidade.
Sandra agarrou-o. Não oferecia resistência praticamente nenhuma. Voltou-o nas mãos, observando o invólucro – sem qualquer dano ou perfuração. Tirando a ardósia do bolso, fê-la ler o circuito de identificação. A informação que retornou estava correcta.
Afastando Carlos, ergueu-se e fez soltar outro dos depósitos. A mola interior do compartimento fê-lo destacar-se, mas ela nem precisou de puxá-lo para notar que estava cheio, como convinha a um depósito de ar.
Apontou a ardósia para o circuito identificador deste. Mesmo fabricante, mesmo modelo, diferente lote – mais recente.
Virou-se irritada para Carlos.
- Como é que você sabia disto?!
- Não se exalte. O comunicado vai chegar-lhe antes do final do dia. Descobriu-se que os preservantes de oxigénio inovadores não são afinal tão inovadores nem tão preservantes. Na verdade, consomem-no e incorporam-no no forro interior do depósito. Os lotes mais recentes vão ser substituidos.
- É bom que o sejam! Como é que você soube disso antes de nós?
- O que é que lhe parece? – a resposta era óbvia: acesso privilegiado a informação comprometedora. Sandra segurou-se à porta, desorientada. Parecia coincidência a mais. Acontecer aquilo precisamente com o aparecimento dele. Ser apanhada numa falha de segurança tão minuciosa e contudo tão importante. Uma estocada no seu calcanhar de Aquiles.
Raciocinou velozmente.
- E como é que sabia que havia um depósito do lote estragado neste compartimento?
Ele sorriu, novamente descontraído.
- Bem, não sabia. Arrisquei, foi tudo. Às vezes, é preciso.
- E se o meu pessoal tivesse dado com este problema?
- Se tivesse, já o teria comunicado lá para baixo – comentou ele. Ela arrepiou-se: tinha razão. – O que quer dizer que passou pela vistoria. O que quer dizer que o seu pessoal limitou-se a conferir a data de validade.
- É o que está escrito no procedimento.
- Pois, mas por vezes é preciso ir além dos procedimentos. Em particular, quando envolve a segurança de várias espécies num dos eventos mais importantes de sempre da Humanidade.
Sandra encarou-o a contragosto.
- Sou levada a admitir que existe espaço para melhoria na nossa estação. Parabéns, Carlos. Bastou-lhe menos de meia hora.
Ele recuou de espanto.
- Ouça, não é minha intenção por em causa o trabalho de ninguém. Apenas estou aqui para ajudar.
- Claro que está – disse com desprendimento. – E se bem me lembro, a sua próxima ajuda será na câmara de negociações. Vista-se, não percamos mais tempo.
Ele olhou-a de lado, enquanto tirava o conjunto elástico da viagem, o arrumava no depósito e se virava de costas para se entregar ao esforço de colocar o fato. Sandra afastou-se para lhe dar espaço; no ambiente exíguo do espaço não havia lugar para a privacidade, pelo que nem lhe ocorreu desviar o olhar nem a ele ocultar-se. Trazia um par de peças interiores práticas, masculinas. O corpo era bem delineado, evidência de horas em ginásio e práticas saudáveis de alimentação. Sandra pensou que algumas semanas em órbita dariam cabo daquela esculturabilidade. E depois ocorreu-lhe que Lydia precisava de apressar-se para aproveitar enquanto ainda valia a pena. O pensamento fê-la sorrir, a contragosto.
Foi a vez dela, finalmente. A prática permitiu-lhe despachar-se, deixando a ele menos tempo para apreciar as suas curvas. Não lhe queria dar o gosto. Também por isso o incitara a vestir-se primeiramente. Era mais difícil ser-se discreto e lançar relances furtivos quando se tinha um aquário semiofuscado na cabeça e uma vestimenta insuflada que dificultava o movimento do pescoço.
No final instalaram mutuamente os depósitos de ar, ligando-os à tubagem apropriada dos fatos. O compartimento, registando a saída, teria já emitido ordens para a respectiva substituição, e Sandra complementou essa ordem com uma indicação de que não deveriam utilizar o lote defeituoso. Trataria de educar o pessoal numa próxima reunião de grupo, na qual seria obrigada a explicar a presença do conselheiro do Presidente. Todos iriam perceber. Gerir não ficava mais fácil quando a autoridade era posta em causa pelos superiores... mas essa não era a sua preocupação agora.
Prosseguiram pelo caminho. A ligação mais próxima com a câmara de negociação distava algumas centenas de metros, pois apenas poderiam existir, mesmo na fase de construção, condutas nas junções. E isto porque a câmara tinha um conjunto de especificações muito próprias. Uma delas era encontrar-se completamente isolada do corpo principal da nave, inclusive a nível atmosférico. Assim, e enquanto a própria câmara não estivesse concluída, todo o trabalho teria de ser efectuado no vácuo, sujeito às demoras e dificuldades que lhe estavam inerentes – bem como o acesso.
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Autor:
Luís Filipe Silva