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Luís Filipe Silva - Novela | 05 Set 2013
Chegou no transbordador seguinte ao dela, repleto de boa vontade e dinamismo. Até então tinha-a inundado de mensagens de conforto e delicadeza, apresentando as suas competências e colocando perguntas discretas com o máximo de desculpas. As perguntas foram suficientes para aumentar a sua apreensão. Não pelo que queriam saber, que era relativamente inócuo e constava dos vários relatórios públicos do projecto, mas pelo âmbito que abrangiam. O novo colega queria pormenores que iam desde os níveis de flutuação e estabilidade da órbita à composição atmosférica a bordo, da dilatação metálica do aquecimento solar à distribuição de alimentos, da coordenação de equipas ao controlo das folhas de trabalho. O lobo urinava para demarcar território e não reconhecia fronteiras. Cheirou-lhe de imediato a substituição eminente. Por que motivo, não conseguia compreender. Teria pisado os virtuais calos alienígenas de alguma espécie, de algum representante? Receariam que viesse a fazê-lo? Estava ali apenas a mão política do Presidente ou alguém lhe sussurrava desconfianças ao ouvido, levando-o a agir?
Por último, seria possível que ela fosse simplesmente incompetente, e isso já transpirasse nas altas esferas?
Estava o transbordador a rodar sobre si mesmo para apresentar a carcaça de atracação ao encaixe para o efeito, já ela se preparara com o que esperava ser esmero suficiente para o receber – percorrendo os espaços em construção e disparando invectivas contra instrumentos menos seguros e trabalhadores menos atarefados, os corredores de passagem para ordenar a limpeza ou amarração de objectos soltos; aplicando igual crítica sobre o seu próprio aspecto e aprumando-se com o rigor exigido a uma directora de projecto: cabelo preso numa malha, uniforme prático e devidamente ajustado à figura do corpo com os fechos de velcro, um tudo-nada de maquilhagem discreta mas feminina. Competente e segura, mas não de forma exagerada. De forma a que não fosse tão evidente que eram, precisamente, essas características que queria transmitir.
O consultor não era a única pessoa a bordo – um fornecedor australiano quisera inspeccionar a instalação (culturas fotossintéticas?, procurava rebuscar no canto da mente; noutras semanas, teria estado mais atenta aos pormenores), enviando três engenheiros nativos que agora emergiam do opérculo, homens de fisionomia possante e sorriso aberto, como estava habituada a encontrar naquele povo. Sorriu levemente de volta, o olhar procurando ultrapassar a curva dos amplos ombros enquanto os cumprimentava. O coordenador da componente ambiental encarregou-se prontamente deles e arrastou-os consigo pelos corredores.
Ele foi expelido pela abertura como um bebé entra no mundo, numa última convulsão da mãe. Aquela comparação apanhou-a desprevenida, e marcou o tom do encontro. Viu uma lufada de cabelo ondulante abrir-se em ondas, como um nadador em pleno mar. Viu um rosto esguio, definido, desenhado, apresentar um sorriso fácil ao assistente cuja principal função era amparar os recém-chegados menos habituados à movimentação em queda livre e evitar acidentes e humilhações. E viu-se, a si mesma, como algo pequeno e inseguro que, diante da passagem para o interior da nave, representava um obstáculo menor a ultrapassar. Um soluço discreto e eis que lhe fugia a pouca auto-confiança restante.
- Sandra? – o homem transbordava de carisma. Estendeu a mão. – É um prazer.
- Doutor Esquível, também eu...
- Por favor, Carlos. Nomes próprios. Vamos estar a trabalhar juntos, não há motivo para cerimónias.
Era aquela intimidade súbita que mais a assustava. Sempre se sentira pouco apta a defender-se da simpatia da raposa.
Apertou-lhe a mão, com firmeza, como um homem, indo buscar forças ao interior, enquanto o coração lhe soava nos ouvidos.
- Também é como nos costumamos tratar aqui em cima, Carlos. A Lydia encarrega-se da sua bagagem... Lydia! – teve de despertá-la, pois a rapariga ficara embevecida a observar o recém-chegado. Percebeu prontamente que iria ser difícil procurar apoio no pessoal feminino.
- É apenas uma mala pequena... – Carlos virou-se para a assistente mas esta ergueu a mão, recomposta.
- Não se preocupe, doutor, que eu entendo-me com os pilotos.
- Sim, a Lydia tratará de tudo. Venha comigo. Vou mostrar-lhe o seu habitáculo – olhou-o mais analiticamente. – Adaptou-se à zero G no transbordador?
- Perfeitamente, cumpri todos os passos. Esteja descansada que não vou vomitar nos corredores.
- Ainda bem. Não temos capacidade de lidar com pessoas pouco experientes, como deve imaginar.
- Creio que a informação que lhe passei foi explícita nessa área – continuava a sorrir, não por uma questão de superioridade nem desconforto, mas mero divertimento, como se desse a entender que compreendia e aceitava o ritual necessário de choque de personalidades e aguardava o seu desenrolar, para passarem à fase seguinte. Extremamente desarmante, sem dúvida.
- Refere-se aos dois anos na equipa de avaliação do elevador espacial? Por essa descrição, não depreendi necessariamente à-vontade com ambientes de queda livre.
- Acredite que se passou bastante tempo em órbita...
Ela lançou-lhe um olhar rápido.
- A estação espacial europeia estava moribunda, nessa época. Os únicos que tinham uma nave orbital que funcionava eram os chineses... está a dizer-me que participavam no projecto?
- Como deve compreender, a informação é confidencial.
Ela acenou com a cabeça, pensativa. Depois, esticou o braço até tocar na parede, na zona de uma membrana colorida. Enfiou os dedos e puxou um cordel rebatível, que enrolou no pulso.
- Siga-me – disse a Carlos, e deu um puxão ao cordel. Reagindo, este recolheu-se, levando-lhe o braço e ela de arrasto.
Carlos imitou-a prontamente, e manteve-se a poucos metros dela.
A zona de acolhimento desapareceu numa curva, e ficaram a sós no corredor redondo, cujas paredes apresentavam pregas e enrugamentos como o interior de um intestino para melhor conter potenciais fugas de atmosfera ou correntes de ar indesejadas pelo aquecimento assimétrico da estação.
- Mudança para a faixa verde a dois metros! – gritou ela, ao aproximarem-se de uma bifurcação. Sem esperar por resposta, soltou-se do cordão e, com um empurrão de pé, atravessou o corredor, enfiou a mão na membrana respectiva da outra parede e deixou-se novamente ser levada pelo cordão rotativo.
Carlos seguiu-a sem hesitar. Fez as manobras em gravidade zero com perícia.
Sandra deixou-se descair para o nível dele.
- Tem bastante jeito para este tipo de transporte.
- Eu disse-lhe que não tinha de se preocupar.
- A maior parte das pessoas, mesmo tendo experiência em órbita, não acerta com o encaixe da correia à primeira, e muito menos numa mudança de rumo – continuou, mostrando também ela uma expressão divertida. – Só a prática lhes mostra que é preciso estar atento às pequenas saliências na membrana protectora.
- Sorte de principiante? – Carlos voltou a mostrar o sorriso fácil.
Ela esperou alguns segundos.
- Ocorreu-me que este sistema foi sugerido pelos Spleen. É o que usam na nave deles. A única outra nave que, além da estação chinesa, estava operacional há cinco anos... – deixou a implicação esvair-se no ar.
Ele encarou-a com curiosidade.
- Para onde estamos a ir?
- Pensei que quisesse meter logo mãos à obra. Ia levá-lo a dar uma volta pela estação. Mostrar-lhe as diversas áreas. Ainda não compreendi o que mais lhe pode interessar.
- Muito bem – se estava à espera de ser conduzido primeiramente ao habitáculo para recuperar da viagem, não deixou transparecer. – Comecemos então pela câmara das negociações.
Sandra pestanejou de surpresa.
- Mas... não terminámos a construção... disse-lhe no relatório... está atrasada.
- Por isso mesmo – e por detrás da simpatia, de repente assomou a força.
- Não está pressurizada ainda – continuou Sandra.
- Bem, não trouxe um fato de vácuo, portanto espero que tenha um que me sirva...
Sandra abriu a boca para responder mas pensou duas vezes.
- Temos de voltar para trás – disse.
- Ou podemos usar os de emergência que estão guardados no corredor lateral U-cinco. Fica mais perto e de acordo com o vosso inventário mais recente, existe lá um tamanho três que me serve perfeitamente.
- Como o nome indica, os fatos destinam-se a emergências, não servem para uso corrente – disse algo secamente, aborrecida por aquela mostra de conhecimento certamente memorizado a partir da planta da estação.
- E se não forem testados regularmente, nem sequer para emergências servem.
- Os procedimentos de segurança têm sido seguidos.
- Sim? Então, qual a periodicidade de revisão do material para emergência em caso de comprometimento do ambiente estanque?
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Autor:
Luís Filipe Silva