Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Histórias da História de um Tríptico

Luís Filipe Silva -  Novela |  03 Jun 2011

(IMERSÃO TOTAL) Lagartas das areias. Muito perto, a menos de quinhentos metros. Por si mesmas, não constituem perigo. Bichos lentos, entretidos a encher as extensas bocarras onde se notam várias fileiras de dentes possantes. A mastigar e triturar e depois engolir. Cheias de silício e minerais, não teriam forças para deslocar as toneladas que lhes recheiam os estômagos. Se tivessem formas de deslocação próprias, está claro. O problema está nos acompanhantes.

Recolhe-se no buraco, tentando ser invisível como um rato do deserto. Preocupado com a eficiência do fato. Winston disse-lhe para não se mexer. Para ficar quieto como um rochedo, para aguentar assim durante horas. As horas converteram-se num dia, quase em dois. A paciência tem limites. As pernas doem-lhe com cãimbras da imobilidade, e nem mesmo as injecções períódicas nas coxas de estimulantes musculares compensam o desconforto. O espírito anseia por cenários diferentes, pois deste conhece todos os pormenores, mais umas horas e saberá de cor a posição de todos os grãos de areia - se ao menos lhe fosse possível mexer a cabeça... Já não pode com a música subauricular relaxante que o fato toca para o distrair durante a eternidade de vigilância. Tem comichões em todos os sítios e não lhes consegue chegar. A mão esquerda não toca na direita desde a manhã do dia anterior. A barriga já se moldou ao formato da duna em que se encontra enterrado. Mas o que mais o incomoda é a espera. A completa ausência de sensações. Anseia por filmes, hamburgueres, filas de trânsito, buzinadelas, manhãs enevoadas, arranha-céus espelhados, reclames luminosos, pedintes. Quando escapar desta, jura nunca mais por os pés na praia. Nunca mais se aproximar de tanta areia na vida. Não a suporta mais a cobrir-lhe o campo de visão, a invadir-lhe o espaço e os sentidos, e ele sem poder sacudir a cabeça.

O que quer verdadeiramente é energizar o equipamento e pular da toca, disparando contra tudo o que se mova. Particularmente se ostentar turbantes brancos e robes macilentos. Winston avisou-o que atingiria aquele nível de tormento. Avisou-o que a tentação seria demasiada. Também lhe disse que morreria a tentar. A disposição pachorrenta dos acompanhantes transformava-se em furia assassina de matilha quando enfrentados. Recorda-te que não enfrentas pessoas normais. Esta gente apenas reconhece a visão divina. Morrerão por ela. Obedecerão ao que lhes seja comandado. Não terás tempo para inibir as ordens de ataque enviadas individualmente a cada elemento pelo chefe do grupo por meio de feixes de ultrassons directos aos receptores implantados na junta dos maxilares. Nem terás tempo sequer de descobrir quem o chefe poderá ser antes que te derrubem. Se te tomam o cheiro, nunca mais te largam. Nem aqui nem para onde fujas. Não te esqueças do olho vigilante em órbita. Os céus aqui são sempre límpidos. A visibilidade é perfeita. Ninguém nos aguarda com aviões ou helicópteros para nos salvar a tempo. Apenas temos algumas horas por semana para nos movermos livremente. Não deites tudo a perder. É uma prova de fogo. Quando a passares irei ter contigo.

Quando a passares irei ter contigo! Solta um queixume de descrédito calado. Pois sim. Tanto quanto saiba Winston já terá invadido o ninho dos Spleen. Já terá descoberto a antecâmara interior de fecundação e cultivo, e recolhido o que veio aqui buscar. Se calhar já está a caminho da costa, para apanhar o barco combinado. E ele aqui. Feito parvo.

Os dedos acariciam as teclas de disparo. A língua passa pelas depressões do bocal do capacete onde se enfileiram as rotinas de combate automático do fato. Os lábios exigem pronunciar o comando que injectaria uma dose pouco saudável de adrenalina no catéter enfiado nas veias. Quase pode saborear o momento. Fecha os olhos. Emergir do buraco. O sol finalmente nas costas e não contra a vista. O corpo erecto, como devia ser. Todos os músculos alerta, despertos ante a descarga glandular. O fato em potência máxima. Duplicando-lhe cada passo. Impulsionando cada salto. As metralhadoras de micro-dardos a activarem-se, duas dezenas de finos tubos que ficam rijos quando percorridos pela corrente eléctrica, dispostos em círculo em redor de cada braço. Ele a esticar os braços, a apontar as mãos com cuidado. As hordas a virem contra si. Os olhos esbugalhados como animais. As cimitarras de fibra monomolecular, capazes de cortar tecido orgânico com uma faca corta manteiga, a soltar reflexos, empunhadas para o ataque. As bocas escancaradas num grito sem língua. As barbas compridas, nojentas, tapando-lhes os rostos e os lábios como se fosse pêlo. Ele a tocar delicadamente no indicador de disparo, como quem desperta a bomba aniquiladora com uma carícia. Os atacantes mais avançados a saltarem subitamente no ar, trespassados por uma chuva intensa de milhares de micro-alfinetes. Os orgãos internos subitamente retalhados. Os ossos cravejados de pontas finas e aguçadas que os quebram ante a intensidade do impacto. As paredes dos vasos sanguíneos danificadas, explodindo em milhares de hemorragias internas e externas através dos milhares de orifícios subitamente abertos. Os terminais nervosos bruscamente interrompidos em nexos cruciais. Os olhos rasgados, despejando o conteúdo líquido do globo ocular como se fosse lágrimas. E a dor. A dor sem descrição, horrenda, brutal, que só a morte aliviará. Ele sorri. Estica os braços, dispara e sorri. A força do homem singelo contra os infiéis. A vingança do justo. Imagina a sua pose no desdobrável de um número de banda desenhada como representando força, potência e integridade: as feições mecânicas da armadura, as pernas separadas, os braços esticados como um tecnodeus a soltar a Morte; dentro de um painel de página inteira, os traços do desenho pesados, a sua figura branca representada contra o céu pintado de carmim forte numa metáfora óbvia de violência. A enorme onomatopeia do disparo destacar-se-ia em primeiro plano, quase enchendo metade da página, expressa em letras garrafais e corpo tridimensional. Seguido de um último painel de enquadramento, a perspectiva obtida de um ponto atrás de si: ele de costas à esquerda, em primeiro plano; depois, e até ao horizonte, uma camada de corpos destroçados, uma mancha vermelha uniforme a introduzir-se na areia, a bonança conquistada.

Qualquer coisa que o distraisse. Está aborrecido. Não consegue compreender porque será tão importante filmar a horda fanática de seguidores dos Spleen e os bichinhos amestrados no acto de comer areia? Porque lhe disse Winston que aquele acto é um dos mais secretos dos extraterrestres, tendo resultado na morte de todos os que tentaram testemunhá-lo? Há muito que não percebe naquela história. Nesse aspecto, é algo que nunca encontrou antes. Torna-a fascinante, é verdade, mas por vezes também extremamente frustante.

Um bip indicou-lhe uma mensagem textual.

ESTÁS POR TUA CONTA

Corta de imediato tudo o que cheire a electrónica pesada no fato: sensores, centro de comando, gravadores, arquivo de memória. Fica reduzido a um mínimo do sistema de apoio à vida, que neste caso significa refrigeração, mantido por baterias de fraca potência. Não o suficiente para continuar vivo indefinidamente - a inclemência daquele deserto inóspito é capaz de entrar no fato e assá-lo - mas garante-lhe um período extendido de sobrevivência. Até o perigo passar.

Não tem tempo de recolher a câmara. Mas como funciona por células fotossensíveis que recolhem e orientam os fotões até ao visor, talvez passe despercebida. E é capaz de acompanhar o avanço dos batedores de terreno que a mensagem combinada de Winston lhe avisara.

Descobre um mar negro de escorpiões de cauda empertigada e pinças alçadas. Centenas, milhares muito possivelmente. Espalham-se pela orla da cratera, e progridem de forma certeira e ordenada. Só de vê-los assim é assustador. Mas mais assustador ainda é saber que a cauda foi tornada num medidor particularmente sensível a micro-variações de campos electromagnéticos, particularmente os emitidos por processadores sofisticados. As pinças estão repletas de toxinas e preparadas para cortar armaduras militares. Os Spleen não brincam em serviço. Winston avisou-o que também esta horde funciona em sinergia, se tal for necessário. O batalhão é composto por diversos tipos de escorpiões. Se o ataque for sério, cada qual começará inclusive a segregar profusamente substâncias que combinadas serão extremamente explosivas. Uma bomba viva e em contínuo movimento, literalmente, pois não deixarão de segregar e de tentar investir contra o atacante até um deles ceder. Isto obviamente sem falar que nesse momento já os extraterrestres estarão alerta do perigo e virão ao encontro do indesejado com artilharia pesada.

Ele procurou aquilo, não foi? Não se pode queixar agora.

No lugar dele, podiam estar tantos - tantos que tentaram. E ele foi o único a conseguir.

Não foi fácil.

Winston era uma lenda no meio, quase um mito urbano, pelo que localizar e contactar com o homem em questão tinha sido bastante difícil. Inclusive nesse aspecto aquilo se apresentava de forma inovadora. Estava habituado a que fosse fácil, que fosse explícito. Aqui teve de lutar para compreender a missão, e ainda assim continua com a sensação de que não sabe de tudo, e o que sabe é quase certamente mentira. Tanta preparação decerto teria um final em grande, apropriado - ou escreverá a queixar-se. Mas por enquanto sente-se realizado. Encontrar Winston e convencè-lo a fazerem parelha não tinha sido fácil. Nada fácil. Em particular nesta zona do mundo, ocupada territorial e economicamente pelos Spleen. Uma terra de fanáticos, experiente em morte e dor e sacrifício ao longo da história, e contendo dos lugares mais inóspitos em todo o mundo para a presença da vida humana. Aqui, na zona limitrofe oriental do Saara, na periferia do que outrora fora conhecido por Líbia e agora era uma nação retalhada, contendo zonas ocupadas pelos Spleen, zonas limitrofes simpatizantes e outras antagonistas. Na periferia o combate era permanente, mas apenas entre humanos - fanáticos contra fanáticos, alimentados uns por uma devoção cega aos novos ocupantes que se misturava com a entrega religiosa de outrora contra os tradicionalistas e fundamentalistas da fé, por sua parte incentivados pelas potências estrangeiras. Em suposto desacordo com os ditames da crença, embora a desculpa dada fosse igual à que separava os dois grandes grupos de seguidores há milénios, que a facção inimiga não seguia a mesma religião. Isto os extraterrestres sabiam gerir bem, mantendo os animaizinhos humanos ocupados uns com os outros à sua própria maneira enquanto ocupavam o tempo a preparar uma grande missão nas profundezas dos ninhos subterrãneos. Havia muita gente a pagar bem pelo segredo. Havia muito mais gente que tentara recolher essa recompensa apenas para falhar completamente. Winston era diferente. Antes de se embrenhar na missão tivera de descobrir o máximo possível sobre a figura. Só essa tarefa consumira tanto tempo que pensara em desistir - mas algo dentro de si dizia que tanta dedicação acabaria por ser recompensada. Winston era um ex-comando de origem britânica com treino na Mossad que incorporara o primeiro batalhão de contacto com os extraterrestres e pertencera à mera dúzia que havia sobrevivido de entre dois mil soldados. Contam as lendas urbanas que os responsáveis pela chacina de tantos tinham na verdade sido um punhado de agentes procurando a exclusividade dos benefícios para os respectivos países, e não um engenho de defesa passiva que, de acordo com a versão oficial, se activara perante a famosa e infeliz manifestação de agressividade do comandante russo. Winston teria sido supostamente um destes agentes, se a mando dos israelistas se a mando de outra facção ninguém sabia. Nessa época actuava já de forma independente, enquanto mercenário, e estar na linha da frente do contacto com os Cabeça de Abóbora fora-lhe valioso. Obviamente que teve de pagar o preço, perdendo dois anos no gelado cativeiro da Geórgia do Sul. Mais uma vez escapara à justa, antes de os Angst invadirem o arquipélago na única manifestação de actividade extra-fronteiras americanas verificada após a invasão. Ainda hoje a Geórgia se mantinha como o território mais a leste ocupado por esta espécie, mas dada a localização tão a sul era considerada como um risco menor, quando comparado com a maior proximidade entre a ponta do Alasca e o extremo russo a Eurásia. Winston desaparecera então dos registos, e só cinco anos mais tarde surgiria associado a um escândalo local envolvendo a libertação de agentes psicotrópicos em Marraquexe. Fora aqui que lhe apanhara a pista, e dali até descobrir que estaria na Líbia tinha sido rápido.

O fascinante está em como aquilo o obrigou a pesquisar, nas bibliotecas online e por intermédio de fóruns especializados, assuntos relacionados com acontecimentos recentes, que ele odeia. Odeia tudo o que seja realidade e política. E contudo, aquilo é perfeito, não só ao mínimo pormenor, como pela incrível coragem em assumir como verdadeiras presunções e rumores disseminados pelos foruns de opinião que a imprensa oficial nem quer tocar. Coisas como quem verdadeiramente compõe o esquadrão de recepção aos extraterrestres. Coisas como os negócios de partilha territorial do mar negro entre as comunidades locais e facções dos Cabeça de Abóbora opositoras do regime da então embaixatriz Wihelmina. Coisas como os acordos secretos desta e das suas empresas, que deu origem ao terrível projecto Candyman. Coisas como a captura ao largo da costa americana de espécimes mortos dos Angst por piratas a mando das várias nações europeias, tentando descobrir o mecanismo biológico da espécie. Coisas que Winston lhe contou entre vários copos de uísque virtual, um luxo a que só ele se podia dar numa terra onde o alcóol é proibido há milénios. Para saber tudo isto, para que ele confie em si para contar foi necessário acompanhá-lo durante muitas horas ingratas, todo aquele tempo sem entrar no terreno, sem acção, sem adrenalina. Tem, em suma, de se tornar confidente. O que nunca antes viu num espaço daquela natureza, sempre preocupado com a gratificação imediata e normalmente com extrema violência. Aquilo não é para todos. Estranhamente, sente que é para si, que está ali uma vocação desconhecida, que se encontra a ser aceite. Quando mais difícil é, mais vontade sente. Uma vontade que não consegue encontrar em outros locais. Ali, ao menos, sente-se vivo, há um propósito específico.

(FIM IMERSÃO TOTAL)

O terreno recedeu, encheu-se de grelhas e indicadores. O cheiro desapareceu, bem como a sensação de formigueiro e intenso calor. De braços doridos e costas a protestar desligou o capacete e retirou-o lentamente, como se fosse um escafandro pesado e não uma mera película sólida mais leve que uma folha de papel. Recostou-se. Tresandava a suor, tinha os boxers húmidos e as costas nuas pegadas à cadeira. Coçou a barriga e olhou para o relógio. Cinco da manhã. A hora limite que estabelecera a si mesmo. Agora, um soporífero de sono REM profundo e estaria pronto para trabalhar num par de horas. Amanhã seria novo dia.

Ainda assim pensou duas vezes antes de desligar o equipamento. Winston estava lá, sozinho. Precisaria dele? O que pretendia daquele grupo de Spleens?

As horas para a próxima imersão iriam passar a custo.

(c) Autor do Texto, (c) Luís Filipe Silva, 2003/2007. Não é permitida a reprodução não autorizada dos conteúdos.

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Luís Filipe Silva

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