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Luís Filipe Silva - Conto | 01 Jun 2011
Mesmo distanciados quatrocentos anos no tempo, o homem sentiu uma estranha proximidade com Blackstone, pois, como ele, encontrava na chegada àquelas costas de golfos e estreitos navegáveis a entrada num mundo novo, desconhecido e repleto de perigos. Como o reverendo de outrora, vinha a convite, sem informação, completamente desprovido de conhecimento prévio nem segurança sobre o futuro. Ambos defrontavam naquele instante o destino. Se havia algo que os separaria, além da proveniência, da época e do propósito, seria o grau de espanto do homem em sentir-se assim pioneiro. Privilegiado. Apesar de negras nuvens ameaçarem a estabilidade do pequeno barco de transbordo, feito de junco e amarras numa estrita concordância com os processos da natureza, e que apresentava uma aparência tão frágil que o tornava consciente de todas as convulsões do mar agitado naquele início de tarde, uma experiência tão diferente do imponente navio de carga, industrial e feito de ferro e movido a vapor, em que atravessara o oceano; apesar de uma brisa forte e fria lhe cortar o rosto e lhe anunciar que estava deveras muito longe de casa; apesar do sentimento de dever que lhe impediria de sentir a terra como, considerava o viajante, todas as novas terras mereciam ser sentidas; apesar de tudo isto, o homem sentia que iria penetrar num território que a muitos fora negado e que era um dos maiores enigmas do seu tempo. Por esta mera razão – não houvessem razões inquestionáveis, superiores a si mesmo – teria valido a pena a viagem.
Manteve-se agarrado à amurada, quase junto à proa, a ver a costa aproximar-se, a ver os istmos e ilhotes passarem a estibordo e bombordo, como se os guiassem para um único porto. Os tripulantes vieram avisá-lo para ter cuidado e manter-se firme, pois a água prometia agitar-se e tornar-se imprevisível. Havia nos modos destes um cuidado particular, como se de genuíno interesse, uma doçura infindável no trato – o seu primeiro contacto com a sociedade fraternal. A estranheza daquele trio de homens fê-lo desviar a vista do cenário, por instantes. Eram de diferentes idades, mas igualmente fortes e musculados, de pele curtida pelo sol e trajando de forma eficiente e prática, tecido leve que não os arrastaria para o fundo com o peso se caissem à água; não estavam calçados, e mantinham o cabelo comprido atado na nuca; puxavam as velas enfunadas com destreza, mas como o vento estava forte, tinham prendido o leme e estavam os três atarefados a trabalhar – uma dança de movimentos, de cordas que eram passadas uns aos outros quase inconscientemente, de cabeças que se afastavam do caminho no momento exacto mesmo se estivessem de costas. O homem que observava registou a estranheza íntima do grupo, e sentiu-se alienígena. Era como se, ao conversar com eles, esperasse que acabassem as frases uns dos outros. Em breve saberia se o fenómeno era específico da situação, ou se seria ainda mais acentuado em terra. Iria com mente aberta. Teria de por os ensinamentos de uma vida inteira de parte se queria ser bem sucedido.
Um rugido profundo sobressaltou-o. Os tripulantes pararam a azáfama e ficaram a assistir, com aparente expectativa. O viajante seguiu-lhes o olhar. E teve um sobressalto. A ilhota distante que descobrira a estibordo já não estava assim tão distante; na verdade, acompanhava a progressão do barco sem dificuldades, uma manta branca e uniforme que se afundara na àgua e cujo ponto mais elevado estava agora ao nível da sua cabeça. O rugido não terminara, apenas baixara de tom e ficara em surdina. O viajante domou o medo e acercou-se do outro lado da amurada. A pele do animal tinha a cor da terra; gigantescas e possantes dobras percorriam-lhe o dorso, mesmo por baixo da pele, como vagas de um outro mar. O homem tentou descobrir os limites do ser, mas a àgua estava escura, o dia cinzento, e não conseguia espreitar o íntimo do oceano. Mas não duvidava que o animal – o ser – fosse tão extenso como o navio em que viajara na última semana. Havia na progressão silenciosa – o rugido acontecia por outra qualquer razão – uma soberania própria dos animais de grande porte.
Então o rugido voltou a intensificar-se, as dobras debaixo da pele formaram ondas concêntricas, ficaram mais numerosas, e do centro surgiu um jacto de vapor. Uma expulsão súbita, mas que banhou o viajante com salpicos a ferver, e o fez afastar-se instintivamente, limpando-se. Mais dobras, mais rugidos. Adivinhando de que se tratava, o viajante supôs que era o vapor que se formava em câmaras internas, como numa chaleira, vapor de água capturada ao mar e aquecida no potente metabolismo do animal.
O rugido tornou-se insuportável, e então a superfície do animal abriu-se num largo esfínter, por onde foi projectado, a dezenas de metros de altura, um gigantesco jacto de água aquecida, que acabaria por cair em parte, já arrefecido, sobre o barco, qual chuva tropical; contudo, juntamente com o jacto, havia sido expelido igualmente um conjunto de formas, lançadas ao ar em forma de anel, com a aparência de bolas de basebol. O homem ficou a vê-las descrever um arco prolongado, afastando-se, alargando o círculo; de repente, abriram-se e desdobraram-se, revelando extensas e finas asas, praticamente translúcidas, uma cúpula de pele na cauda de aparência delicada que, ao enfunar-se, as impulsionou para diante – sem dúvida uma função similar à de uma vela – e um comprido e articulado pescoço, que iam virando de um lado para o outro. Acabaram por dispersar rapidamente, e a ilhota voltou a esconder-se no interior do mar. O espectáculo aparentemente acabara.
E contudo, ao virar-se para encetar conversa com os tripulantes e formular uma ou duas questões sobre os animais, notou que um dos seres alados não desaparecera; na verdade, tinha voltado para trás e perdido altitude. Estava pouco mais alto que o topo dos mastros do barco, e progredia rapidamente na direcção deles. Àquela distância o homem percebeu que o pássaro era maior e mais substancial do que parecia no alto; embora as asas fossem manifestamente incapazes de o propulsionar, pois pareciam extremamente frágeis, e o pássaro usava-as apenas para planar e mudar de direcção, a respectiva envergadura, maior que a extensão do barco de proa a popa, era o suficiente para, se embatesse nos mastros, conseguir virá-lo ou talvez afundá-lo, se fosse essa a intenção do animal.
Olhou de relance para os tripulantes mas não lhes encontrou traços de ansiedade. Deveria deixar-se confiar, ou considerar que a fraternidade congénita lhes atrofiara o centro de auto-preservação do cérebro? Mas poucas hipóteses teria se caisse à água, uma vez que de onde provinha nunca precisara de aprender a nadar...
Segurou-se às amarras mais próximas. O animal aproximou-se rente à superfície das ondas, uma abordagem lenta e surpreendentemente delicada para tamanho porte. O pescoço articulado adiantou-se. No extremo deste segurava-se uma cabeça esguia e um par de olhos destacados, negros.
O ser ergueu-se, passou a rasar por cima deles, volteou no ar, desceu, e fez nova passagem. O pescoço articulado permitia que a cabeça se mantivesse fixa e estável sobre um alvo, mesmo em movimento, compensando os movimentos rotativos das manobras. Durante todo o tempo os olhos mantiveram-se postos no viajante.
Finalmente voltou a ganhar altura, apresentando a bolsa da cauda ao vento, que a insuflou. Seguiu pelo caminho que eles também percorriam, em direcção ao porto, à cidade.
O viajante encarou desconfiadamente os companheiros de viagem. Estes devolviam-lhe a atenção com um misto de curiosidade e divertimento. Sabiam o que tinha acontecido.
Aqueles pássaros deviam ser olhos do grande colectivo. Escutas aéreos para recolher informação.
Se abrigara o desejo, mesmo por instantes, de chegar incógnito ao porto de Boston e assim entrar num dos poucos pontos de contacto do território ocupado e oculto das Américas com o mundo exterior, essa possibilidade tinha acabado de expirar. Os angst sabiam que chegara. Se um deles sabia, em breve todos saberiam.
E a história tinha início.