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João Seixas - Crítica | 27 Jun 2005
Conjunto de duas noveletas, uma escrita em 1992 («A Verdadeira Invasão dos Marcianos», que lhe dá o título), a outra exactamente dez anos depois («Não Estamos Divertidos», 2002), esta obra de Barreiros é um autêntico tromp l'oeil literário (na medida em que tal expressão possa ser aplicada ao escalpelo intelectual de uma obra narrativa). Se ao leitor (ou crítico) menos atento, o conjunto destas duas noveletas possa não parecer mais que uma mera aventura pulpesca, uma leitura menos superficial revela que o todo é claramente muito superior à soma das partes. Na verdade, sob a capa de uma homenagem às raízes do género literário a que se convencionou chamar Ficção Científica, encontra-se uma das mais acutilantes reflexões sobre o papel da literatura, dos leitores e, sobretudo, da intelligentzia literária portuguesa. Barreiros volta assim a afirmar-se, oito anos após a publicação de Terrarium (Ed. Caminho, 1996), como um habilidoso arquitecto de complexas filigranas, que se desenrolam sob a camuflagem enganadora da sincronicidade.
A influência Jungiana não é tão perceptível na obra de Barreiros como o é, por exemplo, na de Ballard, que faz do leque de arquétipos de Jung seus personagens; no entanto é difícil recordar autor que reconduza tão frequentemente e de forma tão hábil o motor da sua narrativa à forma da sincronicidade, essa coincidência despida de nexos de causalidade. E, ao fazê-lo, constrói um recorrente espaço de transgressão, onde os personagens - vítimas dessa prevalente sincronicidade - se encontram sempre no local errado, no momento errado. E nunca antes o tema foi levado tão longe pelo autor como nestas duas noveletas, que mais do que o holograma ou jogo de espelhos a que Barreiros as compara no seu prefácio (ele próprio, um raro exemplo do ensaio coloquial ao melhor nível), se assumem como o combate autofágico de dois siameses. Mais do que complementar-se, elas anulam-se, ao alimentar-se reciprocamente.
O ano é 1902, mas é também 2123, e não pode ser um sem o outro. No ano em que H.G. Wells proferia a sua célebre conferência perante a Royal Institution, onde chamava a atenção para o facto de ser «a nossa grande ignorância do futuro, e a crença de que essa ignorância é incurável que, por si só, revestem o passado de tanta importância na nossa forma de pensar», Barreiros diz-nos que esse mesmo Wells, juntamente com um senescente Verne e um ainda desconhecido Burroughs cruzavam o vazio interplanetário rumo a Marte, numa expedição punitiva da invasão marciana, na sequência da Guerra dos Mundos que o visionário britânico afinal não chegou a escrever. Paralelamente, em 2123, o Dr. Herbert Goodfellow (tão transparente é a máscara fabiana que se acoberta sob o seu apelido) encontra-se num voo TransMarte em direcção ao planeta vermelho, onde supostamente dará uma conferência sobre a sua especialidade: a Evolução Selvagem. Os paralelismos deste inebriante jogo de espelhos começam imediatamente a exercer o seu poder conformador da representação que o leitor faz, não só da ficção, como do real. No 1902 Barreiriano, Wells, explorando o hemisfério Sul de Marte, nunca chegará a proferir a sua conferência, tal como Goodfellow, nunca proferirá a sua em 2123. Mas Goodfellow nunca teve essa intenção. Onde H.G. Wells, um socialista fabiano e convicto darwinista, acreditava que o aperfeiçoamento do homem e da sociedade apenas poderia emergir de um violenta convulsão social, H.G.(Goodfellow) resolve provocar essa convulsão - uma cronodistorsão - introduzindo no ecossistema marciano os invasores octópodes que impediriam Wells de discursar, ao invadir a Terra em 1898.
A plasticidade da História e da evolução operada por Goodfelow, reflecte aqui aquela outra plasticidade da carne que transformou o Dr. Moreau num dos arquétipos do século XX; aquele Moreau que, nascido da pena de Wells, o acompanha agora a Marte. Com Verne (a ingenuidade do tecnofascínio que não teve ainda que conviver com as realidades da guerra no século XX) e Burroughs (representante daqueles Estados Unidos que nasciam como a grande potência mundial após a vitória sobre Espanha em 1898), forma como que uma trindade, unida num momento único e irrepetível, onde todas as correntes da FC, a literatura do tecnológico século XX, se uniram e separaram.
Estes homens, os criadores do futuro, e o riquíssimo género literário que nos legaram, são em Portugal relegados para as prateleiras mais esconsas das livrarias, olhados com embaraço pela academia literária, por todos aqueles Priiiiks que, padecendo ainda de um enfermiço apego ao passado, não sentem quaisquer saudades do futuro.
E se os Priiiiks (provavelmente os mais estranhos alienígenas desde a bola saltitante de Dark Star) servem de elo de ligação entre as duas narrativas, ora vítimas, ora algozes, é o autor que aqui se mostra como demiurgo. Perdido num Marte que lhe parece cada vez mais grotesco e familiar, Wells compreende que «está preso na narrativa de um romance científico e só ele o sabe» (pág.39). Mas Barreiros está muito divertido quando escreve. Wells está, sem o saber, captivo de três narrativas: a do seu próprio romance que nunca escreveu, a de Goodfellow que emula esse romance que lhe marcou a infância, e a de Barreiros, pantocrator, que os sobrepõe à arbitrária narrativa da cronologia histórica de H.G.Wells. Fiel ao autor britânico, Barreiros sonha o futuro, ainda que este seja apenas um outro passado.
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Autor:
João Seixas