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Luís Filipe Silva - Conto | 21 Jun 2005
Terça, 17 de Agosto (à noite)
A sensação não passou. Voltei ao quarto, à secretária. Voltei à noite. Voltei ao ambiente familiar que me acolhe, mas a sensação não morreu. O déjà vu, esse passou, mas sinto que deixou a sua marca. Estou mudado. Alguma coisa está mudada. Não consigo isolá-la. Está em todo o meu redor, a sensação. Está além do meu alcance, se tal região existir. Como se, aqui, ouvindo os segundos caírem no mecanismo das minhas próprias veias, o tecido de um mundo novo tivesse sido descido, sem a mínima perturbação, sobre aquele que os meus olhos seguravam. Nada continha de diferente, excepto um pormenor, que não lhe pertencia: eu era.
A mudança. Reconheço agora do que se trata. A palavra saltou-me à mente como um animal assustado escapando de uma armadilha: consciência. Estava dentro da minha mão. Estava consciente da minha mão. Da completa articulação do meu braço, da sua condição de apendicidade. A estranheza do peso sobre a mesa de madeira imitada. As rugas que a pele formava na esquina do cotovelo, pequenas marés de gordura e hidrates de carbono em constante agitação. Estava calor, e as mangas arregaçadas até quase atingirem o ombro.
Em 1939, começava a chacina mais brutal da história da raça humana.
Saboreio a ideia. Estava calor. Duas palavras, dois conceitos, dois arabescos que viajaram através do espaço, e através das eras, para desaguarem na foz do rio de tinta que cai da caneta para o corpo da folha. A folha, em tempos, foi parte de uma árvore. Foi a própria árvore, a polpa do tronco, um grão de consciência. Agora, a sua brancura esbofeteia-me e lança um desafio para que eu a viole.
O Japão medieval abandonou, por quase dois séculos, o uso de armas de pólvora e retornou ao manejo das velhas espadas; durante noventa e seis anos as armas tinham sido usadas para travar guerras feudais, com efeitos devastadores. Compreendendo os guerreiros de elite que as pistolas podiam ser manejadas pelo mais comum dos camponeses, e assim era colocada em pé de igualdade a sua fina arte de matar, criaram um precedente ímpar na História das nossas culturas: uma corrida ao armamento que não resultou numa guerra.
Em tempos, a folha que foi a árvore passou a vida envolvida numa feroz competição para abocanhar o maior quinhão de luz solar que conseguisse. Desejava a luz, na inconsciência descuidada de que estava a desejar a própria morte. Cada dia gasto era um dia a menos na quantidade finita que lhe fora destinada. Como este dia que passou hoje por mim.
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Autor:
Luís Filipe Silva
Textos:
O Futuro à Janela: Estudo da Obra e da Ficção Científica Portuguesa Actual
Jorge Candeias fala de O Futuro à Janela, de Luís Filipe Silva