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Luís Filipe Silva - Conto | 21 Jun 2005
Lentamente, o ritmo penetra a minha distracção. Difere de todos os que esperaria, porque é simples e directo. É sincero. Um solo de saxofone, apenas, sem misturas. Notas isoladas que se entrelaçam e formam um cordão contínuo de mortais cadências; ondas do mar que se espraiam em meus tímpanos e neles encontram a morte. É uma morte desejada, a mesma dos minutos, que asseguram a continuidade e o prosseguimento. Como as ondas que, ao desabarem, permitem que a seguinte se forme, corno a contra-resposta que faz avançar uma conversa (e tantas as que aqui ouço, tantas perguntas também), as notas formam, numa sucessão contínua, os elos da corrente, e por extensão, a própria corrente, a própria amarra com sabor a ferro e o vigor da luz a dançar na água. Capturar uma seria quebrar a corrente e impedir a sua existência, porque, quebrada, não se dividiria em duas, mas antes deixava de poder cumprir a sua função: a de agarrar. Deixava de ser amarra. Suspenso pelas notas, sentia-me pairar sobre Paris, sobre as casas de Paris, sobre o oceano de telhados e rostos e de corações a bater. Ouvia-os a todos, os pequeninos por nascer ainda nos ventres das mães, os dos ladrões nas vielas e os dos funcionários nos hospitais, os dos motoristas, os dos que procuravam o esquecimento no fundo de um copo, os dos que dormiam, indiferentes ao mundo, os dos que faziam amor, os dos que morriam devagar, como a última batida de um relógio sem corda. Estava no bar, perto de casa, mas também estava longe, estava em todo o lado, via por todos os olhos.
Então, o som pára, deixando-me suspenso sobre Paris, e é como se o mundo também parasse.
Some of these days
you'll miss me honey
e dou um pulo na cadeira, tão forte que os que a meu lado conversavam olharam-me, espantados. Alguma coisa me batera. Algo intangível, sem forma. Não fisicamente: o ataque foi noutro plano, no plano da consciência. Era como se, subitamente, eu fosse outra pessoa. Uma pessoa vulgar, no início do século, que num bar se sentava a escutar a mesma música e a reagir a ela do mesmo modo. Quase consigo observar a ponte de ligação entre os dois, a milhares de milhas de distância, no tempo e no tecido universal. Uma forte sensação de déjà vu preenche-me. Assusto-me. Sinto-me bem, bem até de mais, e é por isso que quero sair do café e ir para casa. Para o quarto da minha existência. Para as palavras e o meu milénio, a grande lista de datas infinitas que me obrigo a colar numa sequência com significado. Chamo o barman. É o Jacques, conhecemo-nos. Pergunta-me porque me vou embora tão cedo. Respondo que estou cansado. E o trabalho? Ça va, digo eu, a pensar se estarei a mentir.
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Folhear
Autor:
Luís Filipe Silva
Textos:
O Futuro à Janela: Estudo da Obra e da Ficção Científica Portuguesa Actual
Jorge Candeias fala de O Futuro à Janela, de Luís Filipe Silva