|
|
Luís Filipe Silva - Conto | 21 Jun 2005
Discursos de rua, e discursos de parada. De TV, feitos de palanques. Promessas e enganos; encantos?
Estranho. Sinto ainda o beijo seco, a textura da fruta. O sentido. Estás aí. Sabes que aí permaneces. E eu?
O que sinto eu?
Na rua, atravessando a estrada. Os carros buzinam, um até derrapa. Passa de raspão pelas minhas pernas. Não me afasto, não me desvio. O condutor lança o punho de fora e faz um gesto rude. Sexo. As pessoas olham, comentam. Subo para o passeio do outro lado, e o muro de transeuntes abre uma brecha para me deixar passar. Sinto o toque das suas roupas, da carne dos braços desnudos nos meus. Devem julgar que estou drogado; bêbado; que sou um punk: Neoshit walking down the streets wearing the face mask of manhood. Sexo. Conceitos fálicos.
Discursos. Provoquei discursos na rua. Quebrei o silêncio do muro, e os tijolos começam a comunicar; deixam de ser tijolos, tornam-se entes vivos, ganham identidades próprias. Eles são. Eles existem, sabem que são. O tempo passa. Segundos caem. Vazio. Estás aí. Onde estou eu?
Terça, 17 de Agosto
No bar, perto de casa. Película cinzenta de fumo envolvendo as mesas e os espaços entre. Galhofa dispersa, mas concentrada. Pequenos grupos de difusão. Penetro invisível no nevoeiro, e com ele me confundo. O barman já me conhece. Peço o habitual e ponho-me a apreciar o cenário.
No século XIV, não havia electricidade. Logo, não havia uma tecnologia electrónica desenvolvida. Os serões eram passados a ouvir o dedilhar natural de pele sobre cordas finamente esticadas, lançando os sons na concavidade das caixas-de-ressonância, para aí se reproduzirem e multiplicarem, no sentido bíblico. Os pobres deitar-se-iarn cedo, estafados de mais um dia de colheita e de irem pilhar às lixeiras das igrejas, ou punham-se a olhar atordoados para as fogueiras de paus secos e a contarem as misérias do dia. Foder também não demoraria; mas essa era outra questão. Antigamente, as pessoas ainda tinham o direito de errar, porque tudo era novo e inexplorado. Agora, a própria música é depurada até à exaustão para retirar quaisquer vestígios de ruídos e vibrações incómodas. O erro é eliminado; só resta a perfeição, a monótona e repetitiva perfeição. O ritmo é tratado em dezenas de pistas paralelas, até formar um som único, longo, seco. Torna-se tão complexo que o ouvido acaba por desistir e concentrar-se no barulho ambiental, bem mais terra-a-terra. Aqui, esse barulho consegue ser mais elevado que a música de fundo. É ele a própria melodia, demarcando o compasso com que as coisas interagem.
Página 3 de 10
Folhear
Autor:
Luís Filipe Silva
Textos:
O Futuro à Janela: Estudo da Obra e da Ficção Científica Portuguesa Actual
Jorge Candeias fala de O Futuro à Janela, de Luís Filipe Silva