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Luís Filipe Silva - Conto | 21 Jun 2005
Quinta-feira, 15 de Julho
O milénio está a morrer. Sentem-se os últimos suspiros, soprados cuidadosamente pela garganta ressequida. Faltam menos de seis meses, e a contagem continua. Por todo o lado, o impacte começa a notar-se, como o choque frontal de dois carros em câmara lenta.
Brinquedos adornam as lojas, formas do futuro: naves espaciais, plataformas, estações de transbordo orbital, homenzinhos em fatos de pressão sentados nas proverbiais cadeiras da NASA. Mas, por muito previsionários que queiramos ser, ficamos sempre constrangidos pelo que conhecemos e não conseguimos abandonar. Bastaria olharmos para uma pequena porção na superfície dos brinquedos para descobrirmos a prova mais evidente: um rectângulo representativo da bandeira de um país, a maioria das quais americanas, soviéticas e francesas. Etiquetas que revelam a conquista da derradeira fronteira por porções definidas da humanidade. Ridículo. Se, de facto, formos lá para cima, será como resultado da cooperação. Entreajuda mútua e esforçada. Será essa a verdadeira conquista, não a outra.
Milénio. Tanto que comporta, e tão pouco. Comportou o nascimento de muitas nações e a queda de outras. Várias etapas da civilização, ditas eras ou idades, quando a civilização era somente a pequena península agarrada à Ásia e que se estende até Portugal. Redescobriram-se rotas que gentes mais antigas haviam percorrido mas mantido ern segredo; a civilização alargou-se. Dois países detiveram o mundo, metade para cada um, neste milénio; e agora, o mundo não é de ninguém.
Toco na casca áspera de um melão, à venda na rua, exposto em caixotes duma mercearia escondida na dobra de um bairro, na dobra de um tempo. O dono é velho e enrugado, e não vê que as coisas se transformam. As rugas caem-lhe sobre as pálpebras, encerram dos olhos a mudança do mundo. Fechou-se na sua própria intemporalidade, e como tal, perdeu-a. A casca toca nos meus dedos e diz: estou aqui. E tu?
A mudança de século está patente nos discursos, também. Na elegia dos movimentos. Parecem mais soberbos, mais dignificados. Mil novecentos e noventa e nove ficará para trás, com todos os erros que se cometeram e dos quais não nos conseguíamos livrar. O novo ano do algarismo par seguido do comboio de zeros será o ano de recomeço e da retentativa. Como magia, na passagem de um segundo (o último) para outro (o primeiro), as culpas serão perdoadas, e a cabeça escorrerá água benta pelas curvas do dorso.
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Autor:
Luís Filipe Silva
Textos:
O Futuro à Janela: Estudo da Obra e da Ficção Científica Portuguesa Actual
Jorge Candeias fala de O Futuro à Janela, de Luís Filipe Silva