Conceito de Luís Filipe Silva

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O Futuro à Janela: Estudo da Obra e da Ficção Científica Portuguesa Actual

Miguel Valverde Juncal -  Crítica |  23 Mai 2005

6. Temas e Motivos da Ficção Científica em O Futuro à Janela

A) A sociedade e o ser humano.

Na obra há muitos elementos conformadores da sociedade e do ser humano: leis judiciais e morais, classes sociais, sexo, mutações...

- sociedade e moral: em muitos relatos de Luís Filipe Silva, dos poucos dados que se podem extrair da construção da sociedade e a política, a maioria são negativos. Em «A Última Tarde» e em «Criança Entre as Ruínas» achamos dois estados autoritários que incluso uma vez desfeitos mantêm a sua opressão. Mas aí acabam as semelhanças. «A Última Tarde» situa-se num estranho mundo em que as relações entre irmãs (a «Mais Velha» «Mudada» em homem) é o normal. «Criança Entre as Ruínas» começa num passado em que as classes sociais estão tão estratificadas que num ataque alienígena morre a maioria das pessoas da classe mais baixa. A menina sobrevivente recorda os tempos em que a mãe lhe ensinara as palavras repreção e agitar (é que a identificam com um grupo de «revolucionários»), as quais não podia dizer em voz alta. O conto filtra informações sobre a opressão dos ricos, a situação da fome do interior de Portugal...

A moral, junto com o sexo, é nesta obra não só um elemento perturbador do género, mas um intento de linearização, da ruptura de tabus que a sociedade proíbe, sobre tudo o instinto destrutivo do ser humano. E daí a crueldade, a violência e o sadismo de alguns dos relatos de Luís Filipe  Silva («Os Poetas da Rua», «Pequenos Prazeres Inconfessáveis» ou «Série Convergente»). A religião, como em quase o resto da ficção científica, não aparece mais que ironicamente em «Embaixadores da Boa Vontade...».

- o sexo e a raça: os estudiosos da psicanálise não deixam de ver nas astronaves ou nas potentes armas símbolos sexuais, já que em muitas obras o sexo não estava presente. Esta tendência foi mudando nas últimas duas décadas (basicamente devido a questões sociais e morais dos escritores de ficção científica), mas o sexo nas obras deste género soem ser estranhas ou marginais... (homossexualidade, incesto, pedofilia, sadomasoquismo). Há quatro relatos onde aparecem relações sexuais: em «Os Poetas da Rua», um dos personagens (Dan Brooks) é homossexual e contraíra SIDA, outro é um pedófilo assassino (Vitrorio Frattelli); em «Pequenos Prazeres Inconfessáveis» a protagonista passa quase pelo incesto com um pai sádico para acabar tendo relações com duas mulheres; em «A Última Tarde» retoma-se o tema do incesto e da mudança de sexo; e em «Série Convergente» o sexo está unido à dor e à morte.

Veja-se que sexo e violência estão muito unidos. Porque a ficção científica utiliza estas formas de sexo? Eu considero que se busca um efeito perturbador e de desassossego, uma sensação que agudize a estranheza do ambiente no que se situa a acção. E não deixa de ser um golpe de efeito compensatório à falta de liberdades que se pretende reflectir em muitos casos.

A raça nesta obra está muito diluída. Os conflitos raciais não existem (excepto buscando-o deliberadamente na luta directa ou indirecta de raças nos contos «O Jogo do Gato e do Rato» e «Criança Entre as Ruínas»). A exaltação da raça aparece apenas em «Dois Estranhos, Um Encontro» em que Dom João II promete-se recuperar a pátria perdida, e como elemento negativo em «A Última Tarde» e «Criança Entre as Ruínas».

- O ser humano e o mundo: em alguns dos contos do autor, o homem perde o controle do mundo que habita. O ser humano não consegue superar o holocausto nuclear que destrói o mundo em contos como «Criança Entre as Ruínas» ou «O Jogo do Gato e do Rato». No primeiro conto há uma mistura de amargura e resignação estóica a um mundo que desaparece sem algo que o substitua. Mas o elemento perturbador da criança provocará a reacção contrária dessa resignação. No segundo estamos ante o motivo dos sucessores do ser humano: depois da destruição da terra pelos seres humanos, uma nova raça mutada de cavalos converte-se na raça dominante do planeta (neste conto persegue-se o objectivo da comparação desde uma óptica deformadora dos não humanos e do ser humano. Em «Dois Estranhos, Um Encontro», se bem que o mundo avançou, os protagonistas não têm esse controle, estão submetidos a outros seres humanos. Mas em «A Última Tarde» ou em «Também Há Natal em Ganímedes» o mundo superou a era da autodestruição e prepara-se para ser dono do seu destino. Neste último relato, ademais, define-se com um comovedor acerto o que se esconde por detrás do Natal, o verdadeiro espírito da festividade. Um passo mais além nas mutações genéticas está nos Andarilhos, monstros de 35 metros criados pelo ser humano para gerar uma atmosfera em Ganímedes como única missão. O tema das mutações aparece apenas numa das biografias do conto «Os Poetas da Rua» e com um tratamento humorístico («Mister Machine», um homem que busca ser perfeito com implantações biónicas e robóticas no seu corpo só se sente completamente feliz quando cobre a sua calvície com um implante artificial de cabelo).

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(c) Autor do Texto, (c) Luís Filipe Silva, 2003/2007. Não é permitida a reprodução não autorizada dos conteúdos.

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Referências e Textos Relacionados

Autor:
Miguel Valverde Juncal

Textos:
Jorge Candeias fala de O Futuro à Janela, de Luís Filipe Silva
La Nausée II

Na Web:
O Futuro à Janela (Mediabooks)