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Luís Filipe Silva - Crítica | 05 Jun 2004
A Vida Bela de Klaus Miragata é uma peça de um mosaico ao qual o autor, Jorge Candeias, intitulou de Spam Fiction, ideias de ficção provocadas por temas ou frases de mensagens de spam que vai recebendo na sua caixa de correio electrónica - sem dúvida um dos melhores usos que se pode dar ao correio não solicitado e intruso de espaços em disco caros e limitados, uma função ecológica por manter ocupado um dos autores mais recentes do panorama da ficção científica portuguesa.
O mosaico, ainda no início, e que o autor se propõe construir ao ritmo de um conto por semana até perfazer um ano, não está suficientemente desenvolvido para nos dar a entender se irá haver uma coerência no desenho final e na inter-relação de todas as peças ou se o destino é o do caos, no qual cada conto vale por si e apresenta um universo específico, nada ou pouco relacionado com os outros universos. Nesse sentido, é mais justo, mas eventualmente mais incompleto, avaliar cada conto de forma individual, até provas em contrário.
Contudo, algumas observações se podem fazer à priori face aos três primeiros contos publicados.
Primeiramente, a tendência, da qual o autor poderá ou não estar ciente, de um individualismo marcante, por vezes traído pelo uso da primeira pessoal do singular na narração. Os três personagens (Flor do Trovão, A Rapariga Triste, Klaus Miragata) não são tanto os olhos através dos quais cada universo nos surge, como o próprio centro dos acontecimentos, a razão da história e os destinatários finais do desfecho. Não se trata nem de um defeito nem de uma virtude, mas uma presença notória numa amostra pequena e que contraria a imagem de diferenciação que é dada pelas outras características dos contos (personagens, localizações, temas completamente distintos entre si).
Também a existência vincada de uma história, ou seja, um enredo que surge de forma explícita e que se sobrepõe à percepção do mundo, parece ter sido uma das decisões inconscientes do autor, o que deve constituir o maior desafio de todos no decorrer do projecto, pois não é fácil desenvolver convenientemente uma história no tamanho escolhido (contos curtos) e com necessidade de renovação a cada sete dias. Interessante é o facto de, ao mesmo tempo que a primeira Spam Fiction publicada - Flor do Trovão - é aquela que simultaneamente concentra a maior densidade de enredo com localização e temática marcadamente de ficção científica (e por sinal, maior dimensão do conto), os outros contos apresentam um deslize incerto para uma menor relevância do enredo e também para uma menor diferenciação do que os distinguiria como ficção científica. Subtilmente, surge-nos uma velha máxima, de que interiorização e quietude andam de mãos dadas e não se misturam com visualização e movimento, máxima na qual assenta todo o debate entre mainstream e pop-literature. Não seria justo condenar de forma alguma a Spam Fiction por este facto, aliás porque nem é esse o propósito do autor. Mas seria interessante ver, no decorrer do projecto, o derrube de algumas tiranias.
Voltemos a A Vida Bela de Klaus Miragata, conto muito curto que retrata uma decisão profissional (e financeira) que o protagonista é obrigado a tomar, enquanto tenta sobreviver num mundo economicamente em ruínas. Obviamente que a afirmação de «mundo» é tão relativa quanto o que quisermos que seja, e quanto mais indivualista a peça, mais reduzido este mundo se torna. Para todos os efeitos, Klaus até poderá viver numa época de opulência, em que todos são ricos e imortais, e ele pertencer ao bairro mais pobre e mais injustiçado de uma pequena ilha do Atlântico. Se Klaus é uma anormalidade estatística, não o sabemos, pois ele não nos mostra, não pensa em mais nada que na sua miséria, que ironicamente intitula de «vida bela». Apenas nos são mostrados os defeitos, e logo desde o início a peça se assume como cínica e como consciente da luta de classes corporativa.
«(...) Segundo os relatórios de desempenho, a representação da empresa nos congressos de Saaremaa, San Andrés e Tokelau saiu cara este ano, e as mais-valias lá obtidas não compensaram. — Shiva volta a erguer os olhos. Atrás deles vinha um sorriso diagonal, com uma ponta de desprezo — É o que acontece quando se leva a administração toda para as ilhas do Pacífico, mais secretariado e electroassistentes, mas pronto...
Klaus fica calado. O teste de lealdade era demasiado óbvio.»
A decisão final acaba por não se assumir como resultado de uma luta interna por manter a dignidade, mas por uma questão de conformismo / revolução face a más decisões de gestão. Neste contexto, deixa de ser uma luta ideológica para ser uma contenda de vontades, entre os have e os have-not. Uma decisão que diz muito a quem anda nas lides empresariais, mas que aparece enquadrada numa submissão extrema, no que é a frase mais subversiva do conto: tendo tomado a decisão e ofendido os poderes instituídos, Klaus «sai, fechando com cuidado a porta atrás de si.» (O itálico é meu).
Estamos em presença de um conto de extrema subtileza. O tema, contudo, merecia ser desenvolvido de forma mais original, pois esta subtileza desaparece perante um desfecho previsível. Neste sentido, parece ser mais uma ideia de conto, e não propriamente um conto, tendência a que se arrisca a cair este projecto interessante pelas próprias condições de nascimento a que se auto-impôs. O leitor não se apercebe da luta interior de Klaus pois, internamente, já a viveu, e por isso não presta atenção às palavras. Klaus é infelizmente um personagem bastante uni-dimensional, condição sine qua non de uma profunda depressão espiritual e intelectual, e no conjunto dos padrões de cinzento que nos fica da leitura, a moral da história esbate-se, pouco clara. É preciso estar atento.
Em jeito de prolongamento, um comentário à afirmação do autor, na qual classifica o conto como ficção científica.
As menções da electro-carros (tecnologia existente há décadas), ruas decrépitas, tele-trabalho, equipamento de realidade-virtual (um computador ligado à internet?), e água racionada que se tem de pagar caro (algumas regiões do país em tempos de seca?), pouco contribuem para a sensação de estranheza própria da FC. Tudo nos é muito familiar. E mesmo se fosse diferente, e o cenário fosse uma estação espacial em órbita de outro sol, o próprio enredo iria traír uma ideia de literatura do quotidiano, a literatura que aborda as questões inerentes ao relacionamento entre humanos.
A não ser que, enquadrado no mosaico, possa vingar enquanto FC. Mas como se afirmou no início, até provas em contrário, cada conto apresenta-se sozinho.
A afirmação condiciona o conto a um género, e não acrescenta nada à apreciação da história, acabando por forçá-la a reger-se por um código de conduta que não tem. Este conto não precisa de ser classificado para subsistir.
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Autor:
Luís Filipe Silva
Na Web:
A Vida Bela de Klaus Miragata
Jorge Candeias - site de autor