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Luís Filipe Silva - Crítica | 13 Mar 2004
O tema predominante, de facto, mais que o humor ou a ironia, é a História. Se há algo que os portugueses em geral conhecem é a História do país. De facto, transpiramos História, culturalmente, e de tal forma que se torna constrangedor o desconforto sentido com a falta de relevância que, estamos convictos enquanto nação, descreva a nossa posição actual no cenário internacional. Como todas as convicções, carece de demonstração, mas o simples facto de existir causa entropia no desenvolvimento da cultura. Ainda hoje parece mal fazer uma história cujo capitão da nave, ao invés de se chamar John McDonald, se chame pura e simplesmente o Capitão Felgueiras.
O desconforto é sem dúvida acentuado pelo seguinte facto: os escritores portugueses não são cientistas de formação, e muito menos de profissão. O mais aproximado disso será um médico ou outro (João Aniceto). Pelo que a especulação da hard sf, das ditas ciências duras que implicam matemática e experimentação - as astrofísicas, a bioquímica -, não exista pura e simplesmente no nosso país (e de facto não me estou a lembrar de nenhum livro ou conto português que tenha por temática central uma especulação científica inovadora - ou seja, aqui não encontra um Greg Egan ou mesmo um Greg Bear).
Mas mesmo a noção de utilizar a História de Portugal para criar ficções fantásticas ou alternativas - a dita História Alternativa, na qual se investiga o que teria acontecido se um ou outro evento determinante do passado ocorresse de forma diferente - é bastante recente. Há poucos anos, surgiu por alturas do 25 de Abril, um conjunto de romances em que se especulava o que teria acontecido em caso da não ocorrência do dito em 1974. Eram romances constrangedores, mal escritos e com uma análise história insipiente. Mas aconteceram.
Saramago iria contribuir (inadvertidamente?) "quase" para o cenário da História Alternativa., com a História do Cerco de Lisboa, na qual, pretende estudar o que poderia ter acontecido durante a conquista de Lisboa por D. Henriques aos mouros se os cruzados que o acompanhavam se tivessem recusado a enveredar na batalha. A história é desenvolta e bastante gráfica na descrição da época, promete ser interessante mas... Saramago acobarda-se e faz a maior parte dos cruzados arrepender-se e voltar para trás. E pronto, acontece tudo como teria de acontecer. Assim se estraga um romance.
O mito de D. Sebastião é finalmente abordado em romance por Maria Moura-Botto, em O Regresso de D. Sebastião. Um livro desigual, mas uma experiência, mesmo assim interessante.
A nível de História Alternativa em português, e de forma consistente, o melhor escritor é sem dúvida o brasileiro Gerson Lodi-Ribeiro, considerado como o seu representante por excelência. Foi dele a «Ética da Traição», novela publicada na antologia luso-brasileira O Atlântico Tem Duas Margens: A Novíssima Ficção Científica Portuguesa e Brasileira (Caminho, 1993). Nesta, o Brasil perdeu a Guerra do Paraguai e está reduzido e dividido em dois estados independentes, sendo a maior potência sul-americana a República Guarani; um cientista brasileiro descobre uma forma de viajar no tempo e ajudar à vitória sobre o Paraguai, ou seja, colocar o Brasil no caminho histórico que atravessou na nossa realidade, mas acaba por não o fazer pois percebe que nesse mundo, que é o nosso, os brasileiros são vítimas de maior pobreza e sofrimento. Uma história não só fantástica como politicamente mordaz. Dos contos publicados nas edições portuguesas dos seus livros, grande parte contemplam Brasis alternativos.
Retomando a necessidade dos conceitos científicos na FC, a ausência de obras fortemente especulativas não implica que, na sua qualidade de leigos ou investigadores, os autores ignorem completamente alguma temática científica nas histórias - mas é em grande parte apropriada de uma influência directa da FC anglo-saxónica, cujos conceitos científicos teriam sido suficientemente digeridos para uma melhor apropriação por não cientistas. Tal é o caso da nanotecnologia, que surge nas histórias do João Barreiros (O Caçador de Brinquedos e Outras Histórias), do Daniel Tércio (Pedra de Lúcifer, essencialmente), e (apenas como referência) em algumas histórias minhas.
Quanto ao humor que existe na FC portuguesa, e sem entrar em análises detalhadas, basta dizer que há duas mecânicas: quando é inadvertido, e acontece contra a vontade do autor, pela incongruência, inexperiência ou risibilidade das situações (os livros da Isabel Cristina Pires e do Artur Portela Jr.), e nos casos em que é propositado, de forma ligeira ou satírica (Euronovela, do Miguel Vale de Almeida - ou Quatro Andamentos, do Luís Richeimmer de Sequeira), como forma de passar a mensagem ou aliviar o carácter absurdo do enredo. Nestes casos, o humor serve para passar uma mensagem fortemente dogmática, sobre a tal forma de estar português, que nunca se consegue definir com precisão, mas que é um sabor quase brasileiro, quase carioca, talvez, mas sem o samba e o calor...
Imune a estas influências está João Barreiros, um caso particular e muito próprio, no qual o humor surge de forma muito genuína e talvez desinteressada, e que acontece sempre pela desadequação do protagonista à violência do ambiente. Não há personagens que mais sofram que os seus - embora no fim estes acabem por encontrar uma harmonia que, longe dos finais felizes, permitem a sua libertação do mundano.
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Autor:
Luís Filipe Silva
Textos:
O Original, ou Sua Ausência, na FC Portuguesa, Face a Outros Países