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Luís Filipe Silva - Crítica | 21 Set 2003
Nota do Autor: este é um texto datado, e perceberão o porquê logo na primeira secção, na qual manifesto o meu espanto com as encomendas pela internet. Mas aquilo para que vos chamo a atenção não é para olharem de forma cândida para essa reacção - é sim, para olharem para vós próprios, lembrarem-se de como era o mundo há apenas uma década, e espantarem-se com a nossa própria rapidez de adaptação.
To Hold Infinity, o primeiro romance do britânico John Meaney, é, a vários níveis, um livro que traz surpresas, confirmações, e formas inéditas de abordar o género da FC.
Começando pelo fim. A forma inédita como me chegou este livro às mãos não é, bem vistas as coisas, realmente inédita: vinha dentro de um pacote, entregue pelo carteiro à porta da minha casa; como qualquer objecto que seja transportado por essa imensa rede internacional de distribuição personalizada, precisou, na origem, de alguém que fizesse o embrulho, escrevesse a morada e o fosse entregar para despacho. Ou seja: precisou de mãos humanas. Tais como outras mãos humanas o foram transportando ao longo dos quilómetros que nos separavam. Como foram outras mãos, se quisermos chegar a esse nível de detalhe, que possibilitaram a viagem daquelas palavras desde a mente do autor até aos meus olhos.
Mas a interacção humana terminou aí. Porque o livro esteve, fisicamente, em minha casa antes de o ver. Esteve no meu computador, como imagem e como texto, em parte, na forma de excertos e críticas; e foi através do meu computador que todo aquele processo humano de embalagem e distribuição teve início, pela acção singela, quase inócua, de clicar o botão do rato sobre um ícone designado «encomenda».
Tanta verborreia para falar da internet? Não devia antes estar a discutir se é seguro efectuar compras através do meio, pois é pressuposto que se indique o número do cartão electrónico de crédito? Não devia antes estar preocupado com indicadores económicos, e a abertura das fronteiras ao comércio, pois de repente os concorrentes mais distantes tornaram-se ainda mais atentos e perigosos que a loja do lado?
Esta forma de pensamento é o melhor indicador de como o progresso tomou conta da nossa mentalidade: já nada nos surpreende. O advento da tecnologia tornou-se banal. É como se estivéssemos somente a aguardar que as descobertas nasçam, como se víssemos as mães já grávidas, como se o próprio processo de aguardar por uma melhoria retirasse todo o impacto que a mesma vinha causar.
Pessoalmente falando, nada mais há que me surpreenda a nível da informática. As linguagens mostram-se cada vez mais avançadas, independentes do hardware que as sustentam e do próprio raciocínio humano ao mesmo tempo, são construídas interfaces, extremamente simples mas espertas, para suavizar o processo de acostumização dos não-programadores: a tendência exponencial do método user-friendly. À cara renovada, juntou-se a potência: tenho, no meu portátil, mais capacidade de computação do que tinha no meu 386 de há seis anos! Tenho também, ao meu dispor, e pelo preço de uma chamada local, mais informação (e mais actualizada) do que a constante na biblioteca do meu concelho. Também posso colocar ao dispor de outros os meus próprios conhecimentos, através do e-mail e da criação de uma homepage própria.
E é tão natural! Tão inevitável! As peças do conjunto estão oleadas e em perfeita sintonia: as empresas líderes do mercado são forçadas a inovar para se manterem à superfície; esses desenvolvimentos por vezes devem-se a pressões comerciais, por vezes a pressões políticas e militares, mas, quando divulgadas, são imediatamente absorvidas pelo mercado graças à rapidez de difusão que se consegue pela televisão mais do que por qualquer outro meio, com a possível excepção do cinema. As multinacionais e a legislação comercial ajudam na sua disseminação pelo globo (ou melhor, pelo Ocidente). Por fim, uma rede internacional de pagamentos permite a transferência de fundos de forma simples e directa. A distância deixou de ser um problema. E, graças ao volume de vendas que uma empresa global consegue atingir, o custo também já não é impedimento.
E então, porque não aproveitar a oferta que a Amazon.com, para falar da livraria virtual mais conhecida, me fez, pessoalmente e sem custos adicionais: ter, à distância de um clique no meu computador, qualquer livro à minha escolha, sobre qualquer assunto, seja raro, seja best-seller, limitado apenas (?) à oferta existente no mercado americano?
Vejam: milhares de títulos de FC que nunca chegaram ou chegarão sequer às livrarias portuguesas; a possibilidade de ajuizar uma compra com base em múltiplas críticas e resumos; a facilidade de pesquisa de temas esotéricos e de títulos de que nunca ouvi falar, para as minhas investigações; e a facilidade tão grande de encomendar, sem problemas de maior, em poucos segundos fazendo no entanto um apertado controlo ao extracto do cartão, não vão ter razão as cassiopeias da internet.
E o que está disponível para mim está para si, leitor. O segredo não pertence mais aos membros da elite. Não precisa de depender do interesse dos livreiros, nem de se preocupar com sistemas de encomendas demorados nem sequer é obrigado a cingir-se à bibliografia dos nobelíssimos. Todos os livros de que precisa estão à sua disposição.
Eis que posso, finalmente, começar a discutir o livro que aqui me trouxe, tendo a certeza de que não está reservado apenas para aqueles com as possibilidades e os contactos para o obter.
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Confirmação. To Hold Infinity é um romance ciberpunk, o primeiro de John Meaney, ocasional colaborador da revista Interzone. É um livro espesso (acima de 500 páginas), mas não denso. Espantosamente pouco denso e muito fluído.
O enredo consiste num thriller clássico. Um jovem promissor abandona a casa dos pais para fazer fortuna num planeta distante. Anos volvidos, o pai morre, e a mãe, em estado de depressão, procura encontrar pela última vez este filho, pois tenciona suicidar-se. Viaja para esse planeta, uma terra cheia de riquezas e encantos culturais, apenas para descobrir que o filho desapareceu, que terá presumivelmente assassinado alguns dos seus parceiros de negócios, e que tinha por apoiante um certo Raphael de la Vega, membro da nova elite. Raphael, contudo, esconde um terrível segredo: o de que é um assassino psicopata, que, de morte em morte, vai ocupando o verdadeiro centro do romance.
Chamemos Manhattan à terra estranha. Imaginemos que a família era originária do Japão, ou mesmo de uma vilória no interior dos EUA. Imaginemos que Raphael é um mega-milionário detentor de penthouses no Upper East Side, e que se encontrava a ajudar o pobre rapaz do campo, uma vez que este mostrara ser um ás nos computadores e na decifração de passwords invioláveis.
O enredo vulgar de um thriller de aeroporto, daqueles que se compram para passar o tempo, matar o tédio ou entorpecer o nervosismo de mais uma viagem pelos ares.
Vistamo-lo com os adornos da FC. A terra é, afinal, Fulgor, um planeta distante, semi-terraformado, e o meio de transporte, uma viagem pelo espaço-mu. Este tipo de viagem cria uma casta de Pilotos, seres aparte da humanidade, os únicos capazes de enfrentar o rigor da nova geometria. O filho pródigo não decifra passwords, mas elabora tecnologia capaz de penetrar no Skein, a teia informática que une os cidadãos e as transacções financeiras do planeta. Raphael é, de facto, um psicopata assassino, mas também é um luculentus, um ser humano cujo cérebro foi ligado a um bio-mecanismo capaz, não só de potenciar a inteligência, como de ligá-lo directamente à realidade virtual do Skein. E, ao matar as vítimas, Raphael aproveita a ligação simbiótica para lhes sugar a personalidade, as memórias e o pensamento.
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Autor:
Luís Filipe Silva