O andarilho cinzento baixou a cabeçorra ao nível do solo, e num gesto irrompeu sobre um monte de gelo, envolvendo-o na enorme boca em forma de túnel; quando a fechou, os molares fortalecidos seccionaram a água petrificada, separando o monte da superfície do glaciar. Os mesmos molares começaram, então, a triturar o gelo em pedaços pequenos, de mais fácil ingestão. A cabeça voltou acima, ao topo do longo pescoço. No fim do movimento, os músculos da garganta alargaram-se para deixar passar o gelo, e iniciaram a queda até ao corpo do animal. Apesar de ligeiros, podiam notar-se o progresso dos pedaços mastigados na superfície da pele. Era um processo monótono e muito lento, mas também por este motivo, cativante, e quase hipnótico. Havia um quê de reverente no magnífico potentado daquelas criaturas. Eram montanhas andantes, uma comparação a que se prestavam de imediato. Mas montanhas vivas, feitas de carne e ossos, que respiravam e se mexiam, com consciência própria — embora não fossem inteligentes. Ainda assim, o maior respeito vinha do conhecimento empírico de que a besta de cinquenta toneladas e trinta metros de altura, entretida a mastigar um monte de gelo, provinha das mãos e da mente humanas, e que fora concebida em laboratório através da engenharia genética.
O andarilho era também o presente de Natal de Eduardo para os seus filhos.
— O que vos parece? — perguntou-lhes, através do rádio. Todos vestiam fatos de sair, insuflados e cobertos de dispositivos auxiliares que dificultavam os movimentos, e, portanto, manifestações de entusiasmo. Oxalá conseguisse discernir-lhes os rostos, escondidos no interior dos capacetes escuros, para não perder as expressões de assombro que acompanhariam as exclamações entusiasmadas que castigaram o rádio e os seus ouvidos.
— É tão grande! — disse a pequenina, montada no ombro do pai.
— Claro que é, minha parva! Querias que fosse do teu tamanho? — retorquiu-lhe o José, que a seguir a ela era o mais novo.
— Cuidado com a língua, José. É tua irmã — admoestou de imediato Eduardo, antes que eles pudessem considerar no seu silêncio uma aprovação pelo comportamento. Não parariam de agirem como cachorros numa ninhada, sempre a morderem-se, mas havia que impor disciplina. Naquele ambiente hostil aos organismos, era nos pequenos deslizes que a morte aguardava. — O andarilho tem de ser grande. Não se esqueçam que é, essencialmente, um processador de atmosfera. Separa o gelo em oxigénio e hidrogénio, guarda uma parte nas bolsas das costas, para nosso uso na colónia, e expele o resto. Até ao dia em que Ganimedes tenha uma atmosfera respirável, e ninguém mais precisará de usar estes fatos.
— Vamos respirar peidos! – soltou José, e os outros riram-se. Eduardo deu um berro, para os calar. A indisciplina da idade começava a surgir ao de cima. Como seria criar três adolescentes num espaço fechado, com o vácuo à porta?
— Mas teremos de usar fatos na mesma, pai – disse Douglas, apaziguadoramente. – Por causa da radiação. A atmosfera pode não escapar para o espaço porque estamos longe do Sol, mas Ganimedes não tem campo magnético.
Eduardo olhou com orgulho a figura do mais velho. De todos, era o que mais prometia, e o que mais tinha já alcançado. Revelava uma capacidade intelectual avançada para a idade, e mostrava grande aptidão no campo da física — a tal modo, que ocasionalmente ajudava a mãe em alguns dos seus trabalhos de pesquisa.
Doug referia-se à faixa de partículas carregadas que cercava o espaço local de Júpiter e tornavam este num enorme dínamo. Tão perigosas eram estas para o tecido biológico, que os fatos de vácuo, além de conservarem uma atmosfera respirável à pressão normal terrestre, geravam um campo magnético envolvente que repelia os protões furibundos e protegia corpos e instrumentos. Para tal, recorriam a supercondutores em que corria uma corrente eléctrica ininterrupta.
Eduardo explicou ao filho que tinha razão, mas que ele estava a pensar num futuro mais afastado, quando a própria camada atmosférica quebrasse um pouco a chuva de partículas, e a tecnologia dos fatos progredisse, transformando-os em películas herméticas que se colariam à pele, e não aquelas formas incómodas.
— Olhem — cortou a pequenita, obviamente enfadada pela conversa. — Vem aí outro.
E assim era. Quase na linha do horizonte, recortava-se, um pouco obscurecida, a silhueta de outro andarilho, avançando pacificamente pelo mar de gelo. Na sua esteira, duas filas paralelas de buracos assinalavam as suas pegadas. O animal movia-se com dignidade e soberania, de cabeça erguida sobre o corpo, e já trazia as bolsas cheias de ar. Estava pronto a ordenhar, o que era fabuloso, pois só tinham começado a funcionar na semana anterior.
Que estranho, pensou Eduardo. Aquela não é a zona dele. O que fará por aqui?
Cada andarilho fora atribuído a diferentes zonas da superfície, programados para extraírem o máximo de gelo segundo um padrão controlado e mais eficaz. O facto de um deles transgredir a sua periferia podia implicar um erro de programação. Significava, ainda, que Eduardo teria de passar, como director do Centro de Exploração de Biomecanismos, o próximo turno a depurá-lo e corrigi-lo. E logo no Natal.
Uma vibração no solo fê-lo vir a si. As crianças gritaram de entusiasmo. O andarilho mais próximo deles (mas em termos relativos, pois Eduardo jamais exporia as crianças a um risco) começou a mexer-se. Deu dois passos, incertos, e estacou de novo.
Eduardo percebeu logo.
— Olhem para o cimo da cabeça dele — avisou os miúdos.
Cada um ajustou automaticamente o visor do capacete, até a cabeça do animal lhes encher a imagem. Nada parecia acontecer. Os olhos arregalados, e imensamente brancos, devolviam um olhar contemplativo e desinteressado. A pele, suave e uniforme, não apresentava deformidades, excepto pelos sinalizadores vermelhos e intermitentes, montados na nuca. Não tinham ouvidos — não precisavam do que não poderiam usar.
De súbito, uma membrana ergueu-se. Por ela escapou um jacto de vapor branco, irrompendo com grande violência, e desaparecendo no ar. Manteve-se firme durante alguns segundos, e depois parou. O bicho recomeçou a andar.
— Parte do que ele expeliu é vapor de água; daí ser branco — explicou Eduardo, antes que José se saísse com outra piada. — Liberta gases a cada seis horas. Entre cada exaustão, vai engolindo gelo e separando o oxigénio. E quando as bolsas estão cheias, volta para a colónia, para as esvaziar e alimentar-se.
— Sabem o que me faz lembrar? — perguntou o Douglas; notava-se na sua voz um encantamento especial próprio de quem acabara de ser apresentado ao que se tornaria no grande amor da sua vida. — As baleias terrestres. Os animais aquáticos que expeliam jactos de água quando se erguiam à superfície para respirar.
Dos três, só a miúda nunca tinha ouvido falar de baleias, pelo que coube ao pai, após ter sido bombardeado com perguntas insistentes, explicar-lhe como elas eram, onde viviam, o que faziam, e porquê a comparação. Não que ele próprio tivesse alguma vez visto o mencionado espécime ao vivo — ninguém via, há mais de cinco gerações, excepto estudiosos, biólogos marinhos e os afortunados que trabalhavam nas reservas especiais, fortemente protegidas, onde tinham colocado os últimos exemplares, salvando-os a tempo das garras dos baleeiros gananciosos. Tal como os filhos, Eduardo deleitara-se com as imagens digitais nos ecrãs de cristal líquido, nos grandes projectores envolventes de sala inteira, e até (no que constituíra uma das mais belas experiências da sua infância) em três dimensões, antes os teatros holográficos encerrarem durante a forte crise económica. Desde a Pré-História, desde os tempos do Tyranossaurus rex que não existia animal maior no planeta, nenhum a quem se devesse, com toda a justiça, entregar a coroa da realeza. Tinha sido destronado pelos andarilhos, mas só a nível do Sistema Solar, porque, muito naturalmente, a Terra não necessitava dos seus serviços (utilizava de facto mecanismos de processamento do ar, para reparar os estragos provocados pela poluição, e pela epidemia que dizimara um décimo do plâncton, mas tratava-se de organismos minúsculos, bactérias e protozoários geneticamente modificados). Contudo, os andarilhos eram animais feios e brutos; a evolução não actuara durante milhares de anos, suavizando-lhe as formas, se comparados com as baleias; não lhes dera um apurado ouvido para o canto, ou sequer uma voz. Não podiam comunicar com outros da mesma espécie. Eram criaturas práticas, funcionais: bestas. Sem a aparente efemeridade dos adornos de beleza.
Entretanto, já Eduardo conduzia o grupo de volta ao tractor. Acima deles, o Sol punha-se sob uma unha de laranja-vivo e irrequieto, e um círculo de estrelas desaparecia por detrás da enorme massa que ocupava quase todo o céu de Ganimedes.
O corpo de Júpiter tornava-se mais opressivo no lado da noite: era uma mancha negra, gigantesca e medonha, implantada directamente sobre o satélite. No espaço, onde o tamanho se mede em termos relativos, e nunca se tem a percepção verdadeira de quão grande pode ser um planeta, Júpiter desafiava as convenções; ele era o rei, e sabia-o. Mais: queria que todos reconhecessem e se impressionassem com a sua majestade. Quem por ele passava, não ficava insensível — excepto se se viajasse, amedrontado, dentro do caixilho metálico da naveta —, não deixaria de se sentir como um grão de poeira minúsculo num universo de montanhas. Muitas eram as vezes que os colonos, oprimidos, desejavam que no céu nascessem nuvens, para deles ocultarem o olho negro do planeta. Um dia, mais tarde, quando existisse atmosfera, talvez este sonho fosse concretizado.
Por ora, tinham de se limitar a viver em ambientes pressurizados e estanques, como a cabina do tractor, onde aproveitaram para imediatamente retirar os capacetes. Os olhos de cada um convergiram, inconscientemente, para os rostos dos companheiros, saudosos do calor humano, e fartos de estarem a sós consigo próprios.
Eduardo ligou o motor e começou a dirigir-se de volta à colónia mais próxima, seguindo o farol visual (uma luz intermitente no cimo de um poste com cem metros de altura), mas confiando mais no radar electrónico, que recebia o sinal-guia do Centro de Comunicações. A meio do caminho, José perguntou-lhe, talvez procurando uma reconciliação:
— Pai, estive a pensar. Não corremos risco que os andarilhos tropecem na colónia? Parecem ser suficientemente fortes para as derrubar.
— Impossível, filhote. Além do sinalizador que nos avisa constantemente da sua localização, possuem um inibidor electrónico que os impede de se aproximarem demasiado de nós... emitindo um espasmo de dor como aviso, quando tal acontece. É semelhante ao que possui o teu cão, para que não se aventure além das zonas que lhe são permitidas. Não corremos perigo algum.
Seguiram tranquilos para casa, o rumorar das conversas a desvanecer-se no fim de um dia cansativo. O andarilho, muito atrás deles, deixara de se ver, oculto pelos montes de gelo que permeavam a planície. O pai cumprira o que prometera, levara-os a ver o animal recém-chegado dos laboratórios do Sistema Interior. Agora, já podiam contar aos colegas de ensino, contentes por terem sido os primeiros.
Ao fundo, um pontinho sem significância, perdido no meio de outros tantos semelhantes, marcava a presença do local de onde toda a raça era originária. O calhau chamado Terra passeava indolentemente no seu curso elíptico. Era o denominador comum da raça, o elo, além da consciência pelo próximo, que unia os colonos e os exploradores por todo o sistema. Pertencendo ainda à primeira fornada, a geração que nascera no planeta azul e que dele se expatriara para conquistar novos mundos, como todos os emigrantes, sentia saudades. Saudades que, em certas ocasiões, lhes crispavam a pele e lhes enchiam o rosto de rios de lágrimas — saudades que os filhos deles não compreendiam, nem sentiriam. Uma dessas ocasiões era o Natal, uma das relíquias inúteis que tinha viajado nas bagagens metálicas e cuidadosamente seleccionadas dos emigrantes.
Desde as reservas de Marte, os subterrâneos de Luna, as plataformas livres circunsolares, às gastas e cansadas cidades da velha Terra, os adultos festejavam o Natal. Fingiam que o celebravam para os seus filhos — mas era deles que a magia transbordava, aquele imenso encantamento que toca o coração do vizinho; eram seus os peitos que pareciam querer explodir, os olhos que se encontravam a brilhar na escuridão (olhos que talvez contemplassem paisagens diferentes, mais verdes, mais bem cheirosas, sem tantos painéis cinzentos e luzes de segurança) e as mãos que, retorcidas de ansiedade, voltavam a sentir a textura dos brinquedos de outros tempos.
E as crianças, as crianças de idade, olharam espantadas para o comportamento dos seus educadores, encolheram os ombros, e deixaram-se invadir pela magia. Para elas, o Natal assumia outro significado: era o dia de descanso na colónia, um período de relaxamento na constante vigília contra o perigo de um ambiente hostil. Recebiam presentes, coisinhas inúteis esculpidas pelas mãos dos pais, ou dos amigos que tivessem jeito, mas não eram essas as suas prendas, eram apenas símbolos, rituais de união. As verdadeiras prendas, como descobriam os mais novos nos seus primeiros Natais, era verem desaparecer, mesmo por breves instantes, as rugas de tensão nos rostos dos pais, e serem substituídas pelo traço largo de um sorriso genuíno.
E até os mais novos percebiam, sem saberem como, que é esse o único e legítimo espírito de Natal.