- Vamos que interessa, Hans. Quero a minha casa.
- E tu sabes o que eu quero. Dá-me isso e podes ficar com a tua casa.
- Não negoceio com gente da tua laia. Também sabes disso.
- Como se tu fosses um anjo... Embora tenhas nome de anjo, não é, Samuel? O dissimulado? És como a democracia de antigamente. Tudo aparência, e por dentro, hipocrisia. Vamos todos fingir que nos tolerarmos uns aos outros. Ao menos aqui as coisas são honestas e sinceras.
- Ah, sim, é uma terra de oportunidades.
- A verdadeira democracia não é aquela em que temos de gostar uns dos outros; é a que nos dá a liberdade de odiar e destruir quem odiamos.
- Nisso estamos de acordo – digo-lhe, dando dois passos em frente, ficando mais próximo da miúda. – Porque odeio-te e apetece-me destruir-te.
- Bem sei, insolente – fala agora em germânico; o tom que usa para se dirigir aos soldados. – Já tentaste uma vez, e falhaste. Tinha descoberto o teu precioso segredo, aquele que não querias divulgar. Agora a situação é outra.
- Ora essa, Hans, sabias bem que eu não aceitava chantagens. Tal como não aceito agora.
- Mas desta vez não tens alternativa... não estou dentro de um monomotor que possas novamente sabotar... – fez um aceno aos homens. Eu reajo. Estou cheio de adrenalina e estimulantes. Não me conseguem parar.
Num movimento mais rápido que o instinto, agarro o pescocinho da miuda com o braço esquerdo, aquele que não é meu, e aperto. Os dedos esmagam a pele, traqueia, caróticas. A miúda estica a língua para fora. Aperto mais, com um torção ligeiro, até que solta um estalido. O corpo estremece uma só vez e fica quieto.
Só então o primeiro guarda se acerca de mim. Viro o mesmo braço com toda a força, a mão em riste. Atinge-lhe a maçã de Adão, empurrando-a para dentro. É impulsionado para trás e cai no chão, agarrado ao pescoço.
Os outros guardas foram mais inteligentes, e puxam das armas. Estico o braço na direcção de Hans. Até parece que o estou a saudar.
- É uma prótese biónica e está cheia de C4. O suficiente para arrasar com esta merda toda. Diz-lhes que se afastem.
Hans parece um peixe fora de água, olhando para o meu braço e para o corpo da miúda. Começo a pensar que ele não tem outro regenerador de reserva. E a solução dentro deste está a morrer.
Avanço na direcção dele, sempre a berrar, apenas focado nele.
- Liberta a minha casa e deixa-me sair. Depressa, antes que seja tarde de mais para ti.
Ele demora a reagir – está a tentar congeminar um plano. Não o deixo. Agarro-o pelas condecorações falsas, que se espalham pelo chão, passo o braço à volta do pescoço dele. Se atirarem contra mim, irão atingi-lo. Se me acertarem no braço, adeus a tudo isto.
Ele percebe e pede aos guardas que ponham as armas no chão. Não quer arriscar. Vai tentar safar-se por negociação.
Eu é que não estou para isso. Puxo-o de encontro à janela.
- Espero que saibas nadar.
- Que fazes? Isto é muito alto, morremos os dois.
- Até parece que queres viver para sempre!...
- Pára. Pronto, vê – tira o telemóvel do bolso, envia um código. – Já libertei a tua casa.
- Oxalá digas a verdade. Senão, vais morrer em vão – e com a força toda do braço, faço-o rodopiar contra a janela. Embate contra ela vertiginosamente, desfazendo-a em milhares de pedaços, tombando pela falésia. Os guardas demoram a recuperar as armas e então já estou de pé, já soltei o antebraço, já me lancei pela abertura. A explosão lá no alto é tão forte que ainda me queima os cabelos da nuca. Passam-se segudos até embater na água, e é quase como se embatesse contra pedra.
Fico a boiar na corrente, semi-consciente. Mal noto o helicóptero silencioso, mas surge na hora e forma combinadas. Nada como confiar num estranho e no dinheiro que lhe prometemos – por vezes sobrevalorizamos a amizade...
--oOo--
Faço a recuperação em casa. Estava mesmo a precisar de um banho. Neste caso, é um banho que dura oitenta horas, e quando acordo, estou uma outra pessoa. Ou melhor, volto à pessoa que fui. Que continuo a ser. E penso, desta vez, como é irónico termos chegado, eu e Hans, quase à mesma solução – embora Hans continuasse preso a uma necessidade de poder absoluto, e não conseguisse ver mais além; ele que era o homem das citações. Man sieht nur das, was man weiß. Mas afinal sabia pouco.
Mas também eu estava cego, quando o cerco começou. Tudo o que sabia era que havia uma mulher e havia um feto e que havia uma morte certa à espera de todos nós. As semanas que passámos sem esperança, encarando as gentes à nossa volta lutando por carne podre e poças de lama, chegando a ponderar na morte conjunta e libertadora, até ter percebido a resposta. A resposta que estava ali, tão evidente e tão à mão.
Não precisava eu apenas de um útero funcional? Não era o período de gestação do feto inclusive benéfica para o desenvolvimento da minha solução orgânica? Não me daria os instrumentos moleculares que me restituiriam a saúde, a juventude, o futuro?
Iria sacrificar-me em prol de alguém que conhecia há meros anos apenas, e de um ser em nascimento que ainda nem era gente, apenas por uma questão de consciência? Quando era certa a extinção de nós os três? De que me serviria a consciência quando estivesse morto?
Eis o que descobri nesse momento: que a família nutre o homem. E que o homem que cuida da sua família, garante a sua própria sobrevivência e transporta em si, no seu corpo, o resultado desse amor. Mesmo que involuntário. Mesmo que involva sacrifícios.
E não se arrepende das suas decisões.
Pois a família é o pilar de um homem. E a casa deste, o seu reino.