- O truque é não mostrar medo. E ter dinheiro vivo à mão. E ficar submisso. Sem medos, com dinheiro, e submisso. Como eles gostam que a gente seja.
- É arriscado, ainda assim, com a profissão que tem, sozinho à noite...
- É arriscado desde que nascemos, que é que se há-de fazer? Para onde há-de ir um homem, que é que há-de fazer, se não aquilo que sempre fez, o que sabe, onde sempre esteve?... Estas ruas, conheço cada canto e elas conhecem-me. Há cinquenta anos, cavalheiro, há cinquenta...
- Não percebi que era desta vila.
- Os que têm cargos baixos e que eles ainda não mataram, geralmente são-no. Toleram-nos, como os cavalos toleram as moscas. Aos outros, matam-nos a todos.
- Até turistas?
- Principalmente a esses. Para virem fazer turismo para aqui, ou são doidos ou são espiões – e lança-me um olhar de soslaio como se quisesse perceber a qual das estirpes pertenço.
Em breve chegamos a Alexanderplatz, que não é realmente uma praça mas uma rotunda, concebida para impedir o avanço dos carros e obrigar as visitas a apearem-se e seguirem a pé. Imponente e perigosa, descubro a maior fortaleza desta terra, uma besta que se agarra à rocha extensa que sobranceia o mar como um demónio adormecido no precário equilíbro da falésia. Parece estar incrustrada no próprio veio da terra, com a sua superfície polida e brilhante como se feita de uma peça única, impossível, de opal negro, que reluz no interior com milhares de cores difusas e sugere a existência de uma pele coberta de escamas, acentuando a imagem do demónio. Torres que Speer nunca conseguiria imaginar e muito menos realizar com a tecnologia de então, elevam-se com a altura de cinquenta homens, e enovelam-se no alto, cujos topos, mais volumosos que as finas bases, revelam a graça e a força tênsil só conseguida por materiais elaborados a partir de moléculas únicas e incrivelmente extensas. Encontram-se fortemente iluminados por uma luz vermelha cuja função é alertar contra a aproximação de transportes por água e ar, mas que igualmente consegue produzir, com plena consciência disso, a imagem de dois olhos sempre vigilantes, continuamente irados. Não há contudo olho mais terrível que o da suástica imensa, ondulante num tremor digital, que encima toda a estrutura e a ilumina nesta noite sem lua.
O caminho de aproximação – a pé – do outro lado da rotunda, está delineada por luzes de presença, e assume a forma de uma comprida língua, conduzindo directamente à boca do demónio.
Não levo a mal que o taxista quisesse despachar-me.
- Não consigo ir-me embora – continua a falar enquanto lhe pago, embora esteja já no exterior do carro. O acontecimento da noite soltou-lhe a língua. Isso, e julgar-me português como ele. – Nasci aqui. Ainda sonho com o dia em que isto volte a ser a Sagres que era na minha infância. Eles traíram-nos, os cabrões. Votámos neles e retalharam o país para pagarem as dívidas externas. Podiam ter ao menos vendido a outros, e não a estes...
- Cale-se – digo-lhe. – Você não sabe quem eu sou e o Olho Público está em toda a parte. Vá à sua vida.
O homem cai em si de repente, não diz mais nada e acelera. Tiro uma fotografia à matricula do veículo que se afasta e envio-a para o meu arquivo pessoal em Inglaterra. Se me investigarem saberão quem foi a última pessoa a ver-me com vida.
Não que queira ser investigado por quem fosse. Pelo menos, não acontecerá em tempo útil, para me salvar, pelo que me limito a expandir um arquivo histórico. O dia em que me descobri sem casa cancelei todos os compromissos que tinha e transferi as poupanças para Madagascar. Os vizinhos ficariam a pensar que tinha ido de férias ou mudado de localidade, o que não era nada de estranhar nesta era de habitações volantes, e não chamariam a polícia. Suspeitei logo de um ataque directo, pois as casas dos vizinhos mantinham-se controladas ou no mínimo fixas no local – e decerto que não teriam o mesmo nível de segurança militar que a minha. Ataque directo implicava que era pessoal, de alguém que me conhecia, ou seja, que conhecia o meu passado. Mas quem poderia ser? A maior parte deles tinha já morrido, os outros viviam existências inofensivas. E ninguém ficara a saber qual tinha sido o resultado da experiência.
Ou pelo menos, era isso que eu pensara... até agora.
Felizmente, em tempos tinha tido o bom senso de artilhar a estrutura com um conjunto de localizadores dissimulados. Ao pesquisar na net, encontrei-a em trânsito pela América do Norte. O que fazia ali e como chegara tão prontamente era assustador. Não tentei ordenar-lhe que voltasse – podia haver espiões à escuta. Dirigi-me ao contacto apresentado pelo Marcos. Era psiquiatra de sistemas.
- Passe-me a lista de rotinas da casa – fi-lo. Leu-a atentamente. Assobiou. Tinha deparado com os programas específicos de defesa. – Não fazia ideia que o exército tinha chegado ao fim com a operação Transformers...
- É uma versão beta, nunca foi colocada em prática, possivelmente nem funciona na totalidade, duvido que os ladrões quisessem por-lhe as mãos em cima – disse-lhe, para que se concentrasse no essencial. Até porque era verdade. Aquele software era supostamente capaz de, quando accionado, assumir o comando de todos os dispositivos inteligentes num raio físico limitado para os usar como se fossem uma só unidade de pensamento. O que significava que de súbito, as casas da vizinhança, os transportes privados, as células de comunicação, deixavam de responder às ordens dos donos e tornavam-se em armas de ataque ou defesa, muitas vezes sendo sacrificadas ao se colocarem no caminho de mísseis para defender o núcleo central de processamento. Que motivos teria eu tido, até então, para o usar? – Um amigo devia-me um favor...
- Grande amigo... Ou grande dívida... Não vejo nada mais aqui de invulgar, bem, além de algumas rotinas de segurança militares que não se encontram nas fracas casas da gentalha comum, mas tudo isto se adquire no mercado negro. O resto é o habitual conjunto de programas de manutenção doméstica, limpeza, aquecimento, viagem. O Escudix é uma defesa forte.
- O motivo deve ser outro, e não interessa para aqui. O que quero saber é como poderão ter passado por todas estas seguranças – perguntei.
- Bem, o mais certo, penso eu, é que a casa continue inviolada. Está a ver, este tipo de defesas não morre docilmente; aguenta-se até à última, mas quando percebe que não vai conseguir, rebenta com tudo. A sua casa teria ficado incapacitada de se mover, sem qualquer cérebro activo capaz sequer de abrir uma porta. O facto de isto não ter acontecido apenas revela que possivelmente continua inviolada. O que são boas notícias.
- Mas então o que aconteceu?