Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]

Conto

<<

~ A Casa de um Homem ~

- O truque é não mostrar medo. E ter dinheiro vivo à mão. E ficar submisso. Sem medos, com dinheiro, e submisso. Como eles gostam que a gente seja.

- É arriscado, ainda assim, com a profissão que tem, sozinho à noite...

- É arriscado desde que nascemos, que é que se há-de fazer? Para onde há-de ir um homem, que é que há-de fazer, se não aquilo que sempre fez, o que sabe, onde sempre esteve?... Estas ruas, conheço cada canto e elas conhecem-me. Há cinquenta anos, cavalheiro, há cinquenta...

- Não percebi que era desta vila.

- Os que têm cargos baixos e que eles ainda não mataram, geralmente são-no. Toleram-nos, como os cavalos toleram as moscas. Aos outros, matam-nos a todos.

- Até turistas?

- Principalmente a esses. Para virem fazer turismo para aqui, ou são doidos ou são espiões – e lança-me um olhar de soslaio como se quisesse perceber a qual das estirpes pertenço.

Em breve chegamos a Alexanderplatz, que não é realmente uma praça mas uma rotunda, concebida para impedir o avanço dos carros e obrigar as visitas a apearem-se e seguirem a pé. Imponente e perigosa, descubro a maior fortaleza desta terra, uma besta que se agarra à rocha extensa que sobranceia o mar como um demónio adormecido no precário equilíbro da falésia. Parece estar incrustrada no próprio veio da terra, com a sua superfície polida e brilhante como se feita de uma peça única, impossível, de opal negro, que reluz no interior com milhares de cores difusas e sugere a existência de uma pele coberta de escamas, acentuando a imagem do demónio. Torres que Speer nunca conseguiria imaginar e muito menos realizar com a tecnologia de então, elevam-se com a altura de cinquenta homens, e enovelam-se no alto, cujos topos, mais volumosos que as finas bases, revelam a graça e a força tênsil só conseguida por materiais elaborados a partir de moléculas únicas e incrivelmente extensas. Encontram-se fortemente iluminados por uma luz vermelha cuja função é alertar contra a aproximação de transportes por água e ar, mas que igualmente consegue produzir, com plena consciência disso, a imagem de dois olhos sempre vigilantes, continuamente irados. Não há contudo olho mais terrível que o da suástica imensa, ondulante num tremor digital, que encima toda a estrutura e a ilumina nesta noite sem lua.

O caminho de aproximação – a pé – do outro lado da rotunda, está delineada por luzes de presença, e assume a forma de uma comprida língua, conduzindo directamente à boca do demónio.

Não levo a mal que o taxista quisesse despachar-me.

- Não consigo ir-me embora – continua a falar enquanto lhe pago, embora esteja já no exterior do carro. O acontecimento da noite soltou-lhe a língua. Isso, e julgar-me português como ele. – Nasci aqui. Ainda sonho com o dia em que isto volte a ser a Sagres que era na minha infância. Eles traíram-nos, os cabrões. Votámos neles e retalharam o país para pagarem as dívidas externas. Podiam ter ao menos vendido a outros, e não a estes...

- Cale-se – digo-lhe. – Você não sabe quem eu sou e o Olho Público está em toda a parte. Vá à sua vida.

O homem cai em si de repente, não diz mais nada e acelera. Tiro uma fotografia à matricula do veículo que se afasta e envio-a para o meu arquivo pessoal em Inglaterra. Se me investigarem saberão quem foi a última pessoa a ver-me com vida.

Não que queira ser investigado por quem fosse. Pelo menos, não acontecerá em tempo útil, para me salvar, pelo que me limito a expandir um arquivo histórico. O dia em que me descobri sem casa cancelei todos os compromissos que tinha e transferi as poupanças para Madagascar. Os vizinhos ficariam a pensar que tinha ido de férias ou mudado de localidade, o que não era nada de estranhar nesta era de habitações volantes, e não chamariam a polícia. Suspeitei logo de um ataque directo, pois as casas dos vizinhos mantinham-se controladas ou no mínimo fixas no local – e decerto que não teriam o mesmo nível de segurança militar que a minha. Ataque directo implicava que era pessoal, de alguém que me conhecia, ou seja, que conhecia o meu passado. Mas quem poderia ser? A maior parte deles tinha já morrido, os outros viviam existências inofensivas. E ninguém ficara a saber qual tinha sido o resultado da experiência.

Ou pelo menos, era isso que eu pensara... até agora.

Felizmente, em tempos tinha tido o bom senso de artilhar a estrutura com um conjunto de localizadores dissimulados. Ao pesquisar na net, encontrei-a em trânsito pela América do Norte. O que fazia ali e como chegara tão prontamente era assustador. Não tentei ordenar-lhe que voltasse – podia haver espiões à escuta. Dirigi-me ao contacto apresentado pelo Marcos. Era psiquiatra de sistemas.

- Passe-me a lista de rotinas da casa – fi-lo. Leu-a atentamente. Assobiou. Tinha deparado com os programas específicos de defesa. – Não fazia ideia que o exército tinha chegado ao fim com a operação Transformers...

- É uma versão beta, nunca foi colocada em prática, possivelmente nem funciona na totalidade, duvido que os ladrões quisessem por-lhe as mãos em cima – disse-lhe, para que se concentrasse no essencial. Até porque era verdade. Aquele software era supostamente capaz de, quando accionado, assumir o comando de todos os dispositivos inteligentes num raio físico limitado para os usar como se fossem uma só unidade de pensamento. O que significava que de súbito, as casas da vizinhança, os transportes privados, as células de comunicação, deixavam de responder às ordens dos donos e tornavam-se em armas de ataque ou defesa, muitas vezes sendo sacrificadas ao se colocarem no caminho de mísseis para defender o núcleo central de processamento. Que motivos teria eu tido, até então, para o usar? – Um amigo devia-me um favor...

- Grande amigo... Ou grande dívida... Não vejo nada mais aqui de invulgar, bem, além de algumas rotinas de segurança militares que não se encontram nas fracas casas da gentalha comum, mas tudo isto se adquire no mercado negro. O resto é o habitual conjunto de programas de manutenção doméstica, limpeza, aquecimento, viagem. O Escudix é uma defesa forte.

- O motivo deve ser outro, e não interessa para aqui. O que quero saber é como poderão ter passado por todas estas seguranças – perguntei.

- Bem, o mais certo, penso eu, é que a casa continue inviolada. Está a ver, este tipo de defesas não morre docilmente; aguenta-se até à última, mas quando percebe que não vai conseguir, rebenta com tudo. A sua casa teria ficado incapacitada de se mover, sem qualquer cérebro activo capaz sequer de abrir uma porta. O facto de isto não ter acontecido apenas revela que possivelmente continua inviolada. O que são boas notícias.

- Mas então o que aconteceu?

<<
 

~ Página  3 de  5 ~

>>

- Estes programas domésticos da sua casa, em particular o de limpeza, não são perfeitos. Têm rotinas de prioridades se manifestam como desejos e que entram em conflito com as vontades dominantes dos programas de segurança e intocabilidade. Ora, a casa é um ser inteligente, está preparado para sentir como nós. Vontades não realizadas geram frustrações, frustrações gera depressão, depressão gera inconsistências no processamento e re-prioritização das vontades... o yin e o yang dos velhos conflitos familiares, por assim dizer, a vontade do homem contra a mulher, neste caso num casamento versão informática – mostrou um sorriso divertido, mas que logo cessou pois viu que eu não estava para graças. – Isto leva a que a casa possa ser enganada por sinais externos, em particular se o programa de busca de serviços estiver activo. Imagine que deu ordens para que a casa poupasse dinheiro nas tarefas de rotina; a necessidade de manutenção periódica, combinada com a descoberta de promoções fictícias, lançadas como engodo por este tipo de piratas, a casa pode ser induzida a pensar que é mais prático ou mais barato ir limpar-se no outro lado do mundo, e o software de segurança, porque está descompensado a nível de credibilidade no sistema interno, não consegue impedi-la. Quando chega ao lugar, os ladrões normalmente têm meios de entrar nela, desligar-lhe o software, remodelar e vendê-la a altos preços no mercado negro. Casas móveis são muito procuradas nas Américas. Embora aqui, dado o seu tipo de seguranças, isso não deva ter acontecido.

- Então posso recuperá-la? Basta chamá-la pela net?

- Não, não faça isso. Os ladrões estarão à escuta, e poderão copiar a sua assinatura digital. Tem de fazer isso presencialmente.

- Em pessoa? Deslocando-me para aqui? – apontei para o lugar no mapa. Ficava algures no extremo noroeste dos Estados Unidos. O que fora conhecido por Nova Inglaterra e que agora era a Zona. Onde ninguém podia entrar.

- É onde a sua casa diz que está... – ele também não conseguia acreditar. – Já pensou em comprar uma nova...

Porque me diziam todos isso? Alguém nos rouba o espaço onde vivemos e temos de aceitar passivamente?

Entrar na Zona não seria fácil. Mas talvez uma determinada pessoa me pudesse ajudar.

Acabaria por fazer a viagem numa casa alugada, um pequeno quarto com kitchnette e lavatório no qual mal me podia mover. Passei horas dentro dele enquanto sobrevoava o Atlântico, congeminando as próximas acções e informando-me intensamente sobre os movimentos secretos do submundo informático, que não visitava há décadas. O mais interessante e difícil de controlar era o esquema da célula reprodutora – ou pelo menos assim o informava o Olho Público, ao qual tinha de se dar um desconto por causa da sua apetência para os mitos urbanos. A célula funcionava apenas na net e era um conjunto de rotinas espalhadas por softwaresoftware legítimo e que como tal sustentava as operações de milhares de empresas, julgando-se seguras –, activando-se apenas quando determinadas condições se cumpriam. Digamos, no desvio de cêntimos em cada transacção financeira mundial. Ou influenciando dissimuladamente a evolução das bolsas mundiais. Ou desviando encomendas de mercadorias para mercados negros. Este tipo de software continuava a ser comercializado em regime de exclusividade corporativo, mas quem o programava eram freelancers de toda a parte do mundo – a falta de controlo directo do produto final era enorme. E como não havia um núcleo duro de dissidentes, nem ninguém tomava decisões explícitas, mas pertenciam a comunidades virtuais seguiam rumores e se desfaziam no vento para voltar a surgir noutros locais mais tarde, era dificil de persegui-los legalmente.

Aterrei no porto de Nova Iorque, no meio de uma tempestade que erguia ondas ferozes contra os pontões fortificados de Manhattan e faziam balançar os barcos de bambu, atados uns contra os outros, e que se estendiam por ambos os braços do rio como uma floresta de juncos ou canavais. Eram habitações de imigrantes, a maior parte delas por escolha consciente do que por falta de oportunidades em terra – na prática, uma cultura isolada e nómada que aproveitava a energia das marés para se auto-sustentar e vender a outras comunidades autónomas de imigrantes dispersas pela ilha. A energia do Estado era cara e todos queriam fugir-lhe. E contudo, pensava eu, como era possível viver ali, dois milhões de almas co-habitando em espaços ínfimos, sem qualquer privacidade, em embarcações precárias que um dos furacões anunciados poderia destroçar em segundos? Nova Iorque tinha-se transformado numa Hong Kong do espírito mais intensa e feroz que esta actualmente era; tudo aqui, aliás, era e sempre tinha sido, mais competitivo, mais forte, mais. Aguardei pacientemente a aproximação de um transportador que me levasse para o nicho alugado de uma estrutura na Sétima Avenida, recordando a minha última visita – há quanto tempo! – e tecendo cuidadosamente o argumento que me conduziria à Zona. E quando a casa alugada se fixou na estrutura, fui ao encontro de Shepard.

O problema dos amigos do nosso passado que costumávamos admirar e que ficamos sem ver durante muito tempo, é que normalmente desiludem-nos, e fazem-nos recordar como nós também estamos distantes dos dias de glória. Roy, em seu favor, continuava prático como sempre, e não fez demasiadas perguntas. Parecia satisfeito com a distracção, talvez lhe recordasse uma das nossas missões secretas. Ele agora pertencia aos rangers de controlo da Zona, o que facilitava as coisas, e logo encontrou um bimotor que nos conduzisse ao perímetro. Aparentemente o centro do sinal estava bem dentro da infecção. O que o deixava céptico – casas refugiadas no sítio mais inóspito e artificial do planeta? - , mas ao mesmo tempo cheio de curiosidade.

Mas não continuava exactamente o mesmo. Perdera a capacidade de dissimulação. Encontrava-se naquele limbo próprio dos expatriados, em que as saudades de uma terra que já não existia se misturava com a culpa de a terem abandonado prematuramente. Shepard vivia num Texas que no seu espírito ainda era americano. Acentuara a fala de cowboy, mantinha a pele clara e os olhos azuis expostos, um dos poucos brancos genuínos remanescentes em Nova Iorque. Tinha sido fácil encontrá-lo, demasiado fácil.

Se nele algo mudara era por força dos anos, e não para melhor. Quando me viu, quando encarou o meu aspecto e percebeu o motivo, não tentou sequer esconder a repulsa.

- É aqui o controlo do perímetro – sobrevoávamos o interior de Nova Inglaterra, outrora planície verdejante, agora terra queimada pelos produtos lançados periodicamente pelas missões de vigilância e que separava o perímetro habitável do que o Olho Público gostava de tratar como NKA, ou «Nature Kicks Ass», embora as teorias aceites (desde uma operação militar falhada a um ataque terrorista bem sucedido) concordassem que não a Natureza não tinha sido responsável pelo fenómeno. O Olho também afirmava que a infecção ia reclamando cinco porcento de território por ano, embora os dados oficiais indicassem o contrário. Quem tinha razão?

>>

Folhear
Primeira Página


Página Principal

 

Referências e Textos Relacionados

Autor:
Luís Filipe Silva