For a man's house is his castle, et domus sua cuique tutissimum refugium.
Sir Edward Coke
A bloquear-nos a passagem estão dois putos das SS a pegar fogo a um vagabundo. Riem-se, berram com ele, despejam entusiasmados o conteúdo líquido de um balde sobre a figura prostrada no chão como se tivessem descoberto um brinquedo novo. Estão tão bêbados que mal se aguentam de pé. O velho treme, imóvel como um rato encurralado, e limita-se a olhar a ponta acesa de cigarro em vôo pelo ar que lhe acerta no peito e se transforma em sentença final. O taxista no assento do condutor, solta um grunhido de aborrecimento e recosta-se, num desprendimento absoluto que denuncia familiaridade com a experiência e um puro terror, sabendo que assiste a um acto sobre o qual não tem qualquer controlo e que poderia tê-lo a ele, facilmente, como alvo. Pela janela semi-aberta, surge a baforada acre da gasolina a arder, o cheiro enjoativo e adocicado do fumo, os berros desesperados do homem. A figura rebola no chão em agonia e tenta apagá-lo, mas o fogo consome-o numa fúria cega, e em breve fica imóvel. Os SS ficam-se a rir e a beber das pequenas garrafas, à espera que se extinga. Estão no nosso caminho e em breve vão dar por nós. Ocorre-me que não há mais ninguém nesta praça, ninguém que se interesse ou venha em socorro. O táxi em que me encontro passa de súbito de conveniência a armadilha. Agora entendo a razão que nos fazem assinar o termo de responsabilidade na fronteira, no qual o visitante é informado que a região independente não está ao abrigo da convenção de Direitos Humanos e que assume a responsabilidade de tudo o que lhe possa acontecer. Esta não é a minha terra. Vim apenas à procura da minha casa.
- Não é muito sensato julgar que um principiante conseguirá abrir portas que um profissional abordaria com cautela – comentara Marcos, o detective privado cujo cachimbo (uma peça elegante com fornilho de silicato de hidromagnésio na forma de um tritão que segurava com evidente apego) viajara, durante toda a reunião, de um canto da boca para outro, denunciando ansiedade e insegurança. Agora denunciava algo mais singelo: o negócio estava a escapar-se-lhe, e ele não entendia porquê.
- Quando era novo tinha o meu negócio de software pirata a comando dos russos – respondera-lhe, fornecendo-lhe informação que ele perderia tempo a tentar confirmar, mas sem sucesso. – Não sou propriamente um novato.
- Há quantos anos foi isso? – sorrira. O cachimbo passou para o canto esquerdo. Ainda iria tentar assustar-me mais uma vez. – Ouça, esses gajos são paranóicos, e faz todo o sentido que o sejam. Controlam cultivos ilegais de bactérias de consumo dirigido, sabe de que falo... aquelas que se o infectarem você fica viciado na compra de um determinado objecto fútil, na qual é capaz de gastar todo o seu dinheiro. As doenças são tão difíceis e dispendiosas em detectar e curar que alguns governos estão a punir este acto com a pena de morte, e mesmo assim esta gente não se assusta, veja só o que o aguarda. São gajos habituados a monitorizar o tráfego da net para roubo de identidade, de informações comerciais privadas, de outros negócios ilícitos. Alguns deles sustentam o Olho Público. A maior parte são turcos e arménios cujos pais vendiam armas no mercado negro. Tem a certeza de que consegue lidar com isto tudo?
- Posso tentar.
- A sua casa é assim tão importante? Porque não compra outra?
- Valor sentimental. Foi escolhida pela minha mulher, foi ela que a mobilou, que a equipou. Parecia um pequeno palacete, com dois pisos e uma ampla sala autónoma. O meu puto nasceu lá. Está cheia de memórias gravadas a que costumo aceder quando, entende, a saudade aperta. Reproduz as nossas vozes, o riso do miudo, o cheiro de uma casa ocupada. Vivemos momentos muito felizes, percebe, até... ao acidente... – não era preciso sequer ser bom actor, bastava fazer um ar bastante angustiado, o que neste momento não me era nada difícil. Marcos mostrara-se visivelmente incomodado com tanta emoção desnuda. Possivelmente nem se deu ao trabalho de verificar, logo que eu saí, se a informação era verdadeira.
- Olhe, entendo o que está a sentir, mas é meu dever avisá-lo que a sua casa possivelmente já foi limpa de memórias e estará a ser vendida como qualquer outra em segunda mão. Já não se lembrará de si nem os piratas guardam as memórias que apagam. O melhor mesmo é passar um pano sobre o assunto, accionar o seguro e comprar uma nova, mesmo que mais modesta. Recomece a vida. Quem sabe se não é o destino?
- Ainda não estou preparado para isso. O destino interviu no acidente, neste caso estamos a falar de crime organizado. Há uma intenção por detrás do acto, e quando há intenção há culpados. É diferente.
- Procura vingança?
- Procuro um desfecho – fitara-o então com olhos endurecidos e determinados. Inspirava-me nos thrillers em que vi contracenar o primeiro dos Eastwoods digitais, antes de lhe terem suavizado o aspecto para não chocar o público nem o moderno repúdio da violência. As verdadeiras grandes interpretações acontecem no dia-a-dia, gestos efémeros que passam despercebidos, têm real impacto, mas nunca ganham prémios.
- Compreendo – Marcos soltara então uma baforada teatral, assinalando o fim da conversa. Era tão óbvio que gostava de impressionar os clientes com estas imagens de filme noir como era óbvio que era a pessoa errada para este trabalho. Mas mantivera-se pensativo, e logo abria o assistente electrónico e me passava um contacto. – Não vou poder ajudá-lo, mas vou indicar-lhe uma pessoa. Diga que vai da minha parte.
Era o que eu pretendera desde o início. Aceitara-o com agrado.
- Olhe, tome cuidado com os fanáticos. Os que não fazem apenas pelo dinheiro. São os piores – rematara Marcos, mas eu já tinha a mente nos próximos passos.
E assim me encontro aqui, nesta terra inóspita, a ser inspeccionado minuciosamente ante a lanterna de um puto bravo que deve ter metade da minha idade mas mostra uma bestialidade experiente. O motorista discute num alemão com sotaque, que me esforço para não mostrar que percebo e evitar que me coloquem perguntas directas. O mais alto mostra um sorriso manhoso e estica as mãos.
- Tem uma nota grande? – pergunta-me de repente o motorista num português perfeito.
- Euros? – rebusco no bolso.
- Claro. O dinheiro não tem pátria – pisca-me o olho enquanto lhe ofereço o dinheiro. Mais uma troca de palavras, mais um conjunto de ordens ladradas, mas os dois militares mostram-se visivelmente mais calmos, tendo embolsado as notas. Mandam-nos avançar e o momento de perigo fica para trás. Bem como os restos fumegantes, enjoativos, do vagabundo que não teve a mesma sorte.
- Lidou bem com a situação – comento enquanto o veículo avança nas ruas escuras em direcção à praça central. O odor muda, torna-se em maresia salgada e húmida, que é acompanhada pelo som discreto mas pernamente de ondas à distância.