- Não vê os administradores passar dias a debater, e sem informação adicional, baseados apenas em ideais, rumos a seguir no mercado... - a malta riu-se. - Eis porque a máquina legislativa e a máquina executiva estavam tão distantes.
- Um ministro define estratégias, políticas a seguir... - diria Morais, a visão turva. Tinha de pedir café. Uma bica, que ainda sabiam fazer neste local, pois até essa droga inofensiva se tinha tornado impopular. Os novos yuppies, mais assustadores que os originais, seguiam dietas intensivas e eram adeptos da terapia genética. Era tudo mais assustador. Principalmente o dia-a-dia.
- Mas um ministro naquele tempo estava longe de toda a informação necessária para o fazer.
- E longe das vontades do povo.
- Dependia dos seus secretários e apoiantes.
- A não ser que fosse um político exemplar, mas para isso tinha de perder muito tempo com manobras internas.
- E tempo é dinheiro dos contribuintes.
- Este estado da nação só é possível pela democracia da informação de que hoje dispomos.
- Não estamos contra si - disse finalmente um deles. - As organizações sociais surgem pelas razões que surgem, não é nosso dever julgá-las. No seu tempo, fazia sentido.
Lançou-lhes o melhor sorriso, mas não os demoveu. Antigamente era tudo o que bastava. Vinham comer-lhe às mãos, os jovens, sedentos de orientação e sabedoria. Um sorriso e um discurso, e era vê-los de olhinhos a brilhar. Estes eram tecnocratas ao vivo. Não eram maus rapazes, embora fossem de convicções impenetráveis e quase telepáticas. Tanta união num governo assustava-o. Fazia-o pensar em ditaduras. Mas depois, na prática, não era assim, pois aquela malta, como os advogados, era capaz de liderar equipas de investigação sobre pontos de vista opostos e degladiarem-se mutuamente nas Assembleias.
Ao menos, Ilíado era um pouco diferente.
- Até hoje me vais obrigar a fazer isto? - os pontos amarelos e verdes dançavam no ecrã, e ele seguia-os com os dedos, tentanto tocar-lhes.
- Temos de voltar sempre ao assunto? Faz o teste e está calado.
- Mas se estou em condições... - as bolas dançavam de um lado para o outro, era difícil segui-las.
- Em condições? Bolas, Morais, vais obrigar-me a cancelar a tua apresentação. Olha para estes valores...
- Então, Ilídio, pensas que és jovem como eles? A gente vem da mesma geração, do mesmo mundo. Que te custa não ligares a isto?
- Ao teste de uniformidade de raciocínio? É como não ligar ao facto que o depósito do avião em que vamos não tem combustível. Quem manda é a máquina.
- Dantes quem mandava éramos nós. Desde quando é que tenho de obedecer a uma porcaria destas? - e deu um safanão no ecrã.
- Pois, assim é que não te deixo entrar mesmo.
- Sabes a quantas sessões assisti completamente bêbado? E pensas que era o único?
- Por isso é que inventaram o teste. Acaba lá isso. Vai com calma.
- Um pouco de alcool não faz mal a ninguém.
- Morais, há quem beba e mantenha a integridade de raciocínio, mas não consiga conduzir em condições. Outros conseguem conduzir, mas a bebida afecta-lhes a forma como tomam decisões. Cada caso é um caso. No teu caso, tens a tendência de seguir o lado emocional quando estás mais alegre... tomas opções diferentes de quando não estás. E essa inconsistência é o que o teste revela. Por isso é que tens de fazer o teste todos os dias. Para termos um histórico. E não é só a bebida... podes estar com febre, podes tomar um medicamento, e isso é suficiente para te tornar inviável.
- Faz de conta que estou com febre.
- Já pus isto mais lento. Acaba lá.
Dava trabalho como um filho, pensava Ilídio, mas de certa forma iria ter saudades. Era a cor daquele local tão uniforme e planeado, e ele entendia que isso era necessário. Não que Morais soubesse fazer alguma coisa: era um político puro da velha guarda, e logo especialista em inflamar discussões, combinar arranjinhos, tomar decisões baseado em pouca informação ou rumores (ainda se lembrava da vergonha que resultara na sua caída final em desgraça, quando Morais se prestou a participar num estudo que provaria que decisões feitas ao modo antigo eram geralmente desastrosas; foi a humilhação pública, que o arrasou por completo, e talvez essa fosse a fonte da simpatia que Ilídio nutria pelo ex-deputado), fazer intrigas de gabinete, e favorecer pontos de opinião. Sem qualquer capacidade real de análise, de crítica fundamentada e de gestão. Tudo dons com pouca utilidade nos dias actuais.
Bem, mas estava a chegar ao fim. Ilídio observou os resultados e a monitorização cardíaca. Que estaria aquele homem a sentir? Era, de certa forma, o ultimo a morrer, o irmão que durara mais tempo, na família, e devia estar tremendamente sozinho.
- Tens a apresentação pronta? - perguntou-lhe. Estava quase fora dos limites, mas aprovou a sua entrada.
- Sim, aqui - Morais apontou para a própria cabeça, e sorriu.
Isto vai ser lindo..., pensou Ilídio.
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Subiu ao palco, encontrou o seu lugar no palanque; o pequeno microfone ansiava pelas suas palavras. Sobre a superfície encontrava-se o discurso, impresso em papel e equilibrado com clips, pois a superfície era na verdade um ecrã onde se reproduzia a projecção que se encontrava nas costas do orador para o libertar de ter de virar-se enquanto falava. O assistente mostrara-se perplexo com a falta de uma apresentação visual mas fizera o seu melhor. Morais colocou os óculos, aproximou o discurso. Fingiu lê-lo. Depois pousou-o e encarou a audiência. A Assembleia estava quase vazia de pessoas, mas um indicador na parede oposta informava-o de que era seguido por cento e cinquenta mil pessoas em directo - bem como um cronómetro com o tempo que lhe restava, que não era muito. Ergueu a mão direita e começou a contar.