Os votos começaram a chegar logo pela manhã. Ilídio, principal-mor dos escrutinadores, começou a disseminar os resultados pelas propostas candidatas.
- Começam cedo... - comentou o representante da proposta da Certificação da Qualidade de Informação Online.
- A agenda para hoje está sobrelotada - disse Ilídio, retirando da impressora um gráfico de dispersão histórica das demografias de voto. O representante olhou para o calendário e assobiou. - Não vai ser pior que 15 de Fevereiro do ano passado, em que tivemos de apresentar mais de trezentas moções em 24 horas.
- Que sessão da tarde é esta assinalada? - o representante apontou para a linha a amarelo. Ilídio nem retirou os olhos do ecrã.
- É a proposta do Morais.
- O Morais vai apresentar uma proposta? - o rapaz soltou uma gargalhada. - Deixa-me adivinhar: descontos no imposto sobre o vinho para a terceira idade?
- Ele melhorou muito nesse aspecto... Vai reformar-se, é a grande despedida.
- A corte vai ter de encontrar outro bobo... O que é isto, «Fundo para a Exploração de Emissões Extraterrestres Inteligentes»?
- Exactamente o que diz.
- Este gajo não existe... Bem, vai ser agradável ter um momento de descontracção. Quanto tempo é que falta?
- A revisão da quota anual de pesca de linguado ao largo da costa está quase a terminar... diria dez minutos.
- Vou descer para os bastidores. Dá-me uma boa iluminação.
- É indiferente para as câmaras, como sabes.
- Mas não para mim. Até logo.
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Com o recurso dos meios de comunicação pessoais e o acesso barato e instantâneo a informação complexa, o processo da democracia sofreu uma evolução exponencial. A escolha morosa e popularista de um governo que prometia representar os interesses distantes do eleitor desapareceu para dar lugar à participação directa do cidadão no processo governamental. As pessoas deixaram de votar em princípios para votar em propostas concretas, apresentadas na Assembleia e difundidas pelos canais de comunicação vinte e quatro horas ininterruptas, sete dias por semana, por especialistas representantes das várias equipas multidisciplinares que as haviam estudado e elaborado, consoante as moções ou assuntos em debate. Por cada moção, havia normalmente duas ou três alternativas que eram apresentadas à vez, de forma sumária e com particular relevância para o impacto social, tecnológico, ecológico, económico da região ou do país, qual a viabilidade económica e qual a abordagem proposta - no final, as vantagens e desvantagens de cada uma eram resumidas, e a moção ficava uma semana à votação do público, por meios electrónicos e com possibilidade de consulta dos cadernos de estudo e do historial de votações e assuntos relacionados até então acontecido. Tratava-se de um processo muito objectivo e sem azo a interpretações demagógicas, como no passado, pois as equipas provinham do mundo da ciência e das finanças, e não da política pura - que, aliás, não se podia dizer que existisse. A forma que mais se aproximava das correntes antigas era o debate das questões éticas, mas quando se tornava necessário introduzir esta vertente, abria-se um fórum publico de debate, durante um período limitado, e convidados representantes dos vários sectores sociais para intervir e moderar - o que interessava, no fim, era a participação dos cidadãos, e normalmente as conclusões, ou observações, encontradas, enriqueciam o corpo principal das propostas. Desta feita, o cidadão podia intervir directamente nos assuntos que mais lhe diziam respeito e entender melhor as opções em debate, e o que teria de abdicar para obter o que queria. Isto não isentava a existência de lobbies ou tentativas de influenciar os resultados - deixada à solta, a multidão não tem opiniões, apenas ideias vagas, e é facilmente influenciável... Contudo, a existência de pontos de vista diferentes por cada moção, trabalhados por equipas distintas e em concorrência, oferecia uma garantia maior de exaustividade e dificultava a tentativa de manipulação. E quem não tivesse tempo para assistir e estudar convenientemente, podia sempre escolher para o representar uma figura pública que considerasse ter ideias parecidas; neste sentido, podia dizer-se que havia ainda políticos: neste caso independentes que traziam no bolso um número de votantes, variável consoante a moção e a sua tendência de voto.
Não era de admirar que um político da velha guarda não se conseguisse enquadrar neste mundo moderno.
Morais era dos poucos que, por todo o mundo, não tendo conseguido adoptar uma nova mentalidade e seguido a maré, persistia em continuar a aparecer nas reuniões da Assembleia, normalmente ficando-se pelas filas de trás, sozinho, absorto e lento a intervir. Provinha de um tempo em que o processo legislativo se fazia pela demagogia e não pela análise de informação. Não conseguia digerir os quadros e números apresentados, julgava as apresentações secas e demasiado práticas, e fugia das respostas binárias e comprometedoras do Sim e do Não. A política que ele conhecia era feita de nuances e tons de cinzento, não de brancos e pretos. Os putos de agora não entendiam nada - mas aturavam-no e aceitavam-no e vinham ouvir as suas histórias, embora não conseguisse passar-lhes as preocupações.
- Mas como é que conseguimos representar o povo se não debatemos os assuntos? - perguntava ele na cafeteria, agarrado à sua garrafilha de prata. A rapaziada ficava a olhar-se mutuamente numa atitude crítica; raios para eles, que se julgavam demasiado puros para tocar em álcool; os seus melhores momentos tinham sido quando se encontrava «tocado». - Para cada pergunta, meia dúzia de pontos a assinalar ideias... uma explicação breve e já está...
- Os assuntos são debatidos nos foruns de estudo - responderia um dos rapazes ou raparigas ou andróginos, vestidos de forma leve mas prática, com as roupas ecológicas e os dísticos ostentando a respectiva função e o escalão de representatividade. - Onde há especialistas e analistas, e participação do publico.
- Seria uma perda de tempo conduzir isso durante uma sessão da assembleia - diria outro.
- Se a proposta não está suficientemente desenvolvida, deverá ser agendada nova sessão - diria o primeiro.
- Senão, perdemos tempo e gastamos dinheiro público.
- Se sente que precisa de debater aquela proposta, deveria pedir antecipadamente para participar no seu desenvolvimento.
Raios os partam, estavam todos em conluio.
- Mas a responsabilidade... a necessidade do debate... - a cabeça andava à roda - contrariar as opiniões do adversário...
- Qual adversário? O interesse aqui é comum: gerir a sociedade e a economia da melhor forma.
- Pela análise do problema e escolha das alternativas mais propícias.
- O país é uma corporação gigantesca.
- E por isso tem de ser eficiente.