Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]

Conto

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~ Falstaff ~

Acto II

Chegada de Ford ao porto sul do Enclave Falstaff. O lorde espera-o com toda a pompa e circunstância, rodeando-se de palmeiras em chamas, todas as espécies animais de grande porte do senhorio, e centenas de súbditos a ostentar víveres. O propósito não é só fazer espectáculo, é também humilhar os convidados com a riqueza ostentada. E tem efeito em Ford, que não consegue tirar os olhos da riqueza que conseguiria salvar o seu povo. É uma espada de dois gumes. Falstaff condu-lo para terra e começa logo a urdir a teia: de como os dois enclaves deviam estar unidos, de como seriam mais fortes do que o eram agora. Ford contrapõe, dizendo que pelas evidências, Falstaff estava a safar-se muito bem e não parecia precisar dele para nada - o que lhe pode oferecer um pequeno burgo em decadência? Promessa do futuro, contrapõe Falstaff, que é onde o seu olhar se situa. Explica então que Martinica é rica em recursos, mas Ford, com a limitação actual do seu património genético, precisará de anos antes que a ecologia do enclave se adapte às condições brutais da ilha; Falstaff, pelo contrário, é dono de uma riqueza genética em constante alteração, como ele próprio é exemplo, e pode acelerar o processo - basta para isso uma fusão dos ADN's base e dos respectivos territórios. Ford responde que requer tempo para pensar, sabendo bem que uma fusão como a proposta eliminaria para sempre os traços próprios da ecologia única de Martinica. Falstaff aproveita então para informar que o enclave de Page também se encontra interessado, qual surgira na ilha naquela ocasião de espontânea vontade, quem sabe se para apresentar uma contra-oferta?... É uma mulher forte, comenta Falstaff quase distraidamente, e pela força se controla um senhorio, talvez isso fosse bom para os seus planos; contudo, M Page, na sua opinião, é falsa e dissimulada, aparentando ser um anjo mas revelando-se demónio.

Ford diz que precisa de conferir com a filha.

* * *

Anna foi, entretanto, conduzida para os respectivos aposentos por Pistol, que esvoaça constantemente em torno dela, elogiando a sua beleza e propondo uma união física rápida a ser consumada sem demoras. Anna sente repulsa, mas considerando que pode retirar informações da criatura, começa a brincar com ela, e admite-a no quarto, insinuando que esta obterá o que pretende se voluntariar informação sobre as verdadeiras intenções do mestre. Pistol responde à brincadeira, e deixa entender que apenas as perguntas bem formuladas terão respostas sinceras.

Começa então uma troca de ditos, em que Anna formula pergunta atrás de pergunta («Sta in gran agitazione d'amor per papa?») e Pistol lhe indica que anda longe do fulcro, até que Anna começa a dizer, Não tem a ver com o Pai, e ele diz, «Mais quente», Tem a ver comigo, «Muito mais quente», Esperam que influencie a decisão, «Mais quente ainda», Posso afastá-lo, «Mais frio», Vão convencer-me a mim, «Que gelo!», Vão calar-me, «Será calor que se avizinha?», Vão usar-me como arma, «Que quentinho!», O meu silêncio é a minha arma, «É verão!», Vão afastar-me dele, «Tropical!», Vão matar-me!...

E dito isto Pistol enfuna as asas e pergunta-lhe se a ignorância não é mais bela que o conhecimento. Lança-se sobre ela, rasgando-lhe a carne e violando-a, numa orgia de sangue que mancha todo o quarto.

No fim, saciado, apronta cuidadosamente os indícios que incriminarão Page, admira «Que ardiloso é o mestre!», e sai de cena.

* * *

Falstaff e Ford acabam a volta pelo senhorio. Falstaff diz que no outro dia se reunirá com Page e que Ford será bem-vindo se quiser juntar-se a eles. Este, constantemente preocupado com a filha, não consegue pensar em mais nada. Falstaff envia Bardolf à procura dela enquanto abre o jogo perante o regente: que se Martinica não quiser aceitar, será obrigado a avançar com a proposta de Page, o que não lhe agrada. Ford não sabe o que responder, pois desconfia de todos naquele momento. Eis que a tragédia se abate, quando Bardolf regressa numa grande agitação, portador de notícias funestas. Correm para o quarto, onde Ford descobre o corpo da filha. Chora a sua perda, e Falstaff tenta consolá-lo, dizendo que não descansará enquanto não encontrar o culpado. Ford depara-se então com um objecto caído, ostentando o distico da casa de Page. Falstaff mostra-se indignado e oferece-se para expulsar de imediato o outro grupo de Hispaniola e ajudar Ford na vingança. Ford afirma que não quer tirar conclusões sem mais evidências. Falstaff elogia o raciocínio claro num momento de grande dor e oferece-lhe a sua ajuda, que Ford não vê forma de recusar. Deixam-no a sós com a filha morta, para quem canta a sua mágoa e a sua dúvida sobre o que é verdade ou mentira. Sente que naquele momento já se encontra a perder. Mas o sinal da casa de Page sobre o corpo da rapariga dão-lhe uma ideia.

Page estava a dormir quando Lesta a acorda, dizendo que Ford pretende falar com ela. Ford entra e conta o que ocorreu -Page nega veementemente ter tido mão no sucedido e diz estar a ser incriminada, Falstaff pretende colocá-los um contra o outro. Page pede a Lesta para de imediato ir vasculhar o quarto de Anna com mais cuidado e procurar incriminações contra Falstaff. Com isto, Ford terá legitimidade em erguer um feudo contra o lorde Fanfarrão, podendo contar com o apoio de tantos outros enclaves, que o detestam. Mas que deverão esperar até se fazer manhã e Lesta regressar.

* * *

Na cena seguinte, Falstaff junta-se a Ford no Salão Nobre, mostrando-se preocupado com o estado de saúde do convidado. Ford mostra-se cordial, mas frio e distante. Entra Page, a quem Falstaff se refere discretamente como a falsa. E diz-lhe: minha senhora, lamento informar que terá ocorrido um grave incidente na noite passada. Page revela que já sabe de tudo e responde furiosamente que não vai admitir ser acusada de algo que não cometeu. Para provar, apresenta Lesta, que terá inspeccionado o quarto e descoberto instrumentos espiões e as respectivas memórias. Falstaff não sente necessidade de explicar os instrumentos - pois qualquer um os teria - mas mostra-se desiludido pela atitude de Ford, que se mostrou um fraco ao colocar-se do lado do inimigo, e afirma que quer ver essas evidências, pois punirá quem do seu pessoal tenha agido contra suas ordens.

Os instrumentos mostram o sucedido, e inclusivamente a colocação do objecto incriminador, perante um pai angustiado que chama monstro a Falstaff, mais demoníaco que os seus demónios. Este, de postura fria, pergunta-lhe se sabe de onde vem a espécie dos demónios, e perante a ignorância de Ford, Falstaff pede a Pistol que lhe mostre. Este começa num incantamento profundo, e Lesta começa a tremer. Subitamente, surge os contornos de um demónio, por debaixo da pele dela, da mesma raça que Pistol e em tudo semelhante a este.

Ford berra e diz que começa a enlouquecer. Quem é amigo, quem é inimigo? Afasta-se de Falstaff e de Page e proclama que vai voltar para Martinica, mas que a filha não ficará por vingar.

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Acto III

Dois acólitos de Ford revelam um ao outro a sua preocupação com o estado de saude do regente; que vagueia durante a noite e toma decisões incoerentes, e que não tem cuidado do equilibrio do senhorio como devia. Que pensa demasiado na filha morta.

Na verdade, como revela Ford ao seu conselheiro, preocupa-o o próximo gesto de Falstaff e como se poderão precaver. Os rumores sobre a sua perda gradual de capacidades são propositados, pois poderão conduzir o outro, se for esse o caso, a um ataque mais ligeiro e descuidado. Todas as defesas biológicas e físicas da ilha encontram-se em estado de alerta. Embora não podendo fazer forte ao poderio de Falstaff, confiam em que a comunidade internacional não ficará quieta.

E de facto recebem um alerta, mas a assinalar uma barcaça de sobreviventes: Page e a sua população, que procuram refúgio temporário na ilha de Ford. Do cimo da amurada, Page explica que Falstaff, ante a recusa final de parceria, atacou pela calada o enclave dela, disseminando pragas que rapidamente danificaram a ecologia para lá da possibilidade de recuperação. Ao contemplar a destruição, Page decidira activar o gene da morte lenta, que lhe consumirá o próprio corpo se este for invadido por doenças ou agentes activos estranhos: foi incapaz de deter Falstaff, mas ele não se apropriará do potencial genético dela. Fogem a um enclave morto à procura de nova morada, e Page pede a Ford que lhe dê mantimentos para a viagem. Este acede.

Ao mesmo tempo, Ford recebe uma mensagem. Falstaff anuncia que se encontra ao largo de Martinica e pede autorização para atracar. Page sabe que vem no encalce dela com o objectivo de terminar o extermínio. Mas porque, pergunta Ford, arrisca ele tanto para esse fim? Page confessa então o que nunca contou a ninguém, que há no gene da morte lenta a capacidade de afectar e destruir a estrutura biológica do enclave de Falstaff. Enquanto souber que existe alguém que lhe pode fazer mal, este não descansará enquanto não os exterminar ou assimilar.

Ford não tem outra hipótese. Manda esconder a embarcação e dá permissão a Falstaff que se aproxime mas não atraque sem dizer ao que vem - este começa de imediato a contar histórias de ataques contínuos mas discretos à sua costa pelos barcos das Virgens Britânicas, e que persegue Page para a levar perante um tribunal internacional. Quem a abrigar é a seus olhos igualmente criminoso. Ford afirma que não a viu nem recebeu comunicados dela. Falstaff pede para ir a terra mas Ford diz que o assunto do assassinato da filha ainda não se encontra resolvido, e não lhe dá autorização. Falstaff jura, então, que tudo o que de mau aconteceu às Virgens Britânicas poderá acontecer a Martinica, e dá-lhe até à noite para pensar bem.
Ford acorre a Page, e diz que têm ali a grande oportunidade para acabar com Falstaff de uma vez por todas: bastará atraí-lo a um ambiente fechado para ela poder lançar o veneno mortal. Mas como seduzi-lo a esse lugar? Ford congemina um plano rápido, que Page se apresentará como refugiada oficial sua que solicita uma audiência para o cessar de hostilidades. Mas o veneno também é fatal para as gentes de Martinica, diz ela. "Então inocula-me com o antídoto quando infectares Falstaff... se não resultar, é sempre melhor do que viver sob o seu domínio". Page concorda.

A reunião tem lugar. Falstaff de um lado, Ford e Page do outro. Ford mentiu-lhe, e Falstaff afirma que agora conhece finalmente quem são seus inimigos. Que possivelmente Ford se aliou a Page para assassinar a própria filha e ter uma desculpa perante os vigilantes internacionais para o estabelecimento de uma vendetta. Page não quer saber disso - exige imunidade a Ford dos ataques de Falstaff, e afirma que isso basta para uma intervenção externa. Falstaff ri-se e diz que nem sequer imunidade biológica terá perante ele, quanto mais politica. Page irrita-se e tenta atacar Falstaff, mas este evita-a e contra-ataca, sem resultados. Após uma luta breve, é Ford quem finalmente agarra Falstaff e deixa que Page espalhe pelo ar o seu aroma a morte. Falstaff afasta-se, sentindo-se mal, tomba por terra, e canta a ária da sua morte e do fim de um sonho de império, de retoma da glória dos dias passados, ficando cada vez mais fraco até morrer.

Ford pede então a Page pelo antídoto, que se sente igualmente a desfalecer, e esta fornece-o. Ford diz então, «Não acredito que tenha demorado tanto tempo». Page não entende, mas ele pega-lhe no braço e morde-lhe a mão: «Uma prenda da parte de Falstaff». «Estás em conluio com ele!... E a tua filha?», «Eu não estou em conluio, cara, eu sou ele. Ou pensas que és a única a ter armas sofisticadas?», e numa breve explicação indica ter conseguido compactar a informação da sua memória e personalidade num protozoário com que infectou Ford na noite passada. «Só ganha quem faz sacrifícios... mas agora tenho o teu veneno e a cura do teu veneno, e tenho dois enclaves reunidos num só local sem que o mundo saiba, e até uma nova identidade para despistar os inimigos.» E enquanto ela morre, ele encerra a ópera, cantando:

«Tutto nel mondo é burla.
L'uom é nato burlone,
La fede in cor gli ciurla,
Gli ciurla la ragione.
Tutti gabbati! Irride
L'un l'altro ogni mortal.
Ma ride ben chi ride
La risata final.»

Cai o pano.

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Autor:
Luís Filipe Silva