Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]

Conto

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~ Uma Manhã em Lisboa ~

Vai a meio da subida quando repara que a capela está enfiada num Jardim. A surpresa é total. Devia estar coberta por um campo projector. Como toda a gente, António sabe que ainda existem uns quantos espaços destes pela cidade, mas sempre tomou isso mais como mito urbano que outra coisa. Dois ou três, nas mãos de congregações religiosas, imóveis protegidos e classificados. Cheio de mórbida curiosidade estuga o passo, a soneira anterior afastada agora por completo.

São duas as entradas e ele opta pela da direita, de onde se entrevê um trilho mais curto para o cume. Há uma série de anúncios no portão, mas os pixéis estão tão corroídos que é impossivel lê-los. Pelo sim pelo não, António chega o seu Chip Universal Integrado ao visor.

O portão abre-se com um estalido seco e ele entra.

A primeira impressão é avassaladora: verde, verde por todo o lado, um verde luxuriante e vivo como ele nunca viu na vida, algo que lhe entra pelos olhos, pelos filtros, pela pele, como uma quase presença. Com passadas reverenciais e maravilhadas, António sobe os longos degraus de pedra (pedra? Sim, pedra verdadeira!), olhando, observando, vendo, absorvendo aquele ambiente estranho, ao mesmo tempo desordeiro e intimidante. Com que então era isto a natureza a sério! Tão igual e ao mesmo tempo tão diferente, das imagens com que sempre convivera.

- Era mesmo capaz de me habituar a isto, ó se era! - diz em voz alta. Até a voz ali soava diferente! E o que seriam aqueles barulhos? Como assobios distantes que ora se aproximavam ora se afastavam, mesmo quando ele parava? Seriam pássaros? Pássaros a sério? Impossível!

Dito e feito dois exemplares pardais entram no seu campo de visão, pousando em frente de um curto assento de pedra, do outro lado das escadas. Mais acima, estas acabam, dando lugar ao trilho de terra batida, a céu aberto, que ele vira de fora do Jardim. Aí a vegetação acaba abruptamente, mas António não está em condições de se aperceber disso, mesmerizado que está com os bonitos volumes das aves, a naturalidade das penas, a expressão de curiosidade que os inexpressivos olhos das criaturinhas mesmo assim emitem.

Devagarinho, não vão os pardalitos espantarem-se, António dá um passo e senta-se no banco de pedra.

Durante vários segundos, alongados pelo alvoroço emocional e pelo calor abafado que se começa a sentir, ele e os pássaros entreolham-se, estudam-se, concluem-se. António já esqueceu o carro parado ao fim da avenida, o vicioso furo no pneu, a irritação com a seguradora e a civilização; sente-se a experienciar o paraíso, aquilo que os antigos a que ninguém ligava chamavam de Maravilhas da Natureza.

Como gostaria de trazer ali Clara! Aliás, era mesmo para isso que os jardins tinham existido: para namorar. Que ideia incrivelmente romântica! Por momentos, António delira com imagens softcore da epiderme de Cláudia roçando nas rugosidades cloroplastas das folhas, os glúteos dançando frente aos embasbacados pardalitos, antropomorfizados pela sua indelicada libido lisboeta. Será que ela gostaria disto?, pergunta-se. As potencialidades lúdicas pareciam-lhe imensas. Se ao menos aquilo não fosse um espaço religioso...

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Reflexos da luz intensamente branca que assoma por entre as ramagens obrigam-no a desviar o olhar para o lado. Os pardalitos dedicam-se a brincadeiras peralvilhas, pulando e trocando de lugares, nunca despregando os biquinhos da direcção dele, como se andassem a pensar que bicho seria este, tão grande e esquisito, na terra deles. Abarcando o resto do cenário com novos e brilhantes olhos, António sorri perante o pensamento. Pode-se tirar a natureza do homem, mas não o homem da natureza, pensou.

É uma pena que o mundo estivesse tão urbanizado e poluído, tão... estragado. Folhas de vários tamanhos balançando na brisa, flores coloridas que abonitam os pés dos arbustos e das árvores, restolho. Coisas simples, tornadas mais bonitas pelos passarinhos, pelos vagos zumbidos insectívoros, pela panóplia de loucos aromas. Há terra a sério por alí! Castanha, grumosa, cheia de pequenos deliciosos dejectos naturais, de mistura química tão intensa que a boca sabe-lhe a esse estranho fresco.

O impulso de lhe tocar é irresistível. Inclina-se sobre o lado do banco e apanha um bocadinho entre os dedos. Tira os filtros do nariz e cheira-a. O aroma ocupa-lhe as mucosas com tal violência que António afasta logo a cabeça.

Ao abrir de novo os olhos vê algo que não lhe penetra de imediato no entendimento:

Abrindo as pequeninas asas, os pardalitos dispõem-se em linha.

Que engraçado!, pensa ele, Como soldadinhos de chumbo

Placidamente, as avezitas sacam de mini-uzis, pequeníssimos aparelhos de devastação proto-massiva e, apontando com gestos calmos e seguros, disparam saraivadas de mortíferas agulhas cartilagíneas à carga de 30 por segundo, mandando um atónito António desta pra melhor.

Se é que há um melhor.

Com o corpo perfurado e quase inerte, os olhos desbragadamente abertos para a luxúria verde que aqui tapa o céu, António ainda os vê esvoaçando à sua volta, recolhendo as armas nos coldres de penugem artificial, exibindo logotipos ininteligíveis no interior das asas como se ele ainda pudesse discernir alguma coisa de jeito, até se afastarem por completo, voando de regresso a uns prudentes ramos à distância de um largo suspiro.

Com o desespero tipico de quem sabe que não será socorrido, António percebe agora que nunca chegará ileso a casa; que os pássaros são meros guardas de serviço, seguranças actualizados, devidamente equipados para defender o seu Jardim pelos meios que fossem necessários. Ao exalar o último suspiro pensa que estão ali a olhá-lo provavelmente à espera de outros, animais, cães ou toupeiras ou insectos ou coisa que o não valha agora, para a seguir esconderem-lhe o cadáver ou assimilá-lo de forma natural e ecológica.

E enquanto António morre, a calma bucólica regressa, salvando o jardim do catastrófico e feio buliço do resto da cidade ao longe, branca, luminosamente quente e implacável.

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Autor:
Nuno Fonseca