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Conto

 

Uma Manhã em Lisboa

Apontamentos de ecologia rural em ambiente urbano em prosa retro-modernista, Setembro de 2031

 

Nuno Fonseca

 

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- Domingo tralará, Domingo tralará!

António segue pela Avenida das Descobertas, a uns bucólicos 150 km/h, aproveitando os últimos cartuchos da noitada. Divertiu-se que nem um pacóvio. Bebeu que nem um cacho. Dançou. E beijou Clara. Ainda lhe sente os lábios, a lingua quente enquanto liga o aclimatizador do carro, o ar simuladamente campestre que o atinge como uma caricia.

Lá fora, o sol começa a despontar, raiando de impossiveis cores o manto celeste. Nuvens cavalgam devagarinho em toda a sua extensão. Lisboa, cheia de cimento branco e ruínas em avançado estado de decomposição gnóstica, recebe a luz, assimila-a e devolve-a com violência. Um simples comando vocal cobre os danosos reflexos com uma paisagem campestre.

António, como quase toda a gente, prefere conduzir com imagens de impossível natureza, pixelizações do antigamente. Ainda faltam uns 15 minutos para chegar a casa, pelo que aceita o reclinar do assento e deixa-se levar pelos comandos para-inteligentes da viatura. E é com um perfeito estupor que a ouve dizer que tem um furo no pneu dianteiro esquerdo.

A paisagem é paulatinamente desconstruida, e pela primeira vez António detecta um ruído, que parece ser o do enchimento compulsivo da membrana elástica danificada. De redução em redução, o carro pára junto à berma. Bocejando, António esforça os músculos dormentes para fora, para o ar carregado a cinza da manhã, voltando atrás para apanhar os filtros nasais.

O pneu exibe fendas a todo o comprimento, rachas de relâmpago que o elástico tenta febrilmente reparar sem êxito. Praguejando baixinho, António olha em redor. As ruas estão vazias. Atrás, o mar raia reflexos mortais sobre a Torre de Belém, tornando-a num espectáculo de fogo que não arde. As retinas modificadas detectam o efeito e compensam o suficiente. Ninguém no seu perfeito juízo se poria a andar na rua a esta hora, e num dia de descanso muito menos, pelo que ele volta a entrar na viatura e faz ligação à seguradora.

20 minutos de burocrática conversa levam-no a concluir algo que já intuíra: o seguro não cobre furos, e o reboque terá de ser pago da sua conta profissional bancária. António amaldiçoa o progresso da treta, a civilização inteira.

- Só me faltava esta!

De novo cá fora, decide subir a avenida ao invés de continuar paralelo ao rio. Aquela zona do Restelo costuma ter bastantes assaltos e não lhe apetece chegar estropiado a casa. Ao cimo da Avenida luze uma capela onde poderá pedir ajuda, nem que seja para chegar a casa.

Pelo caminho de empedrado sintético vai vendo as moradias, algumas ainda intactas, mas nem pensar em ir por aí: sabe-se lá que tipo de gente mora nelas ou que sistemas exóticos de segurança têem implantados.

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Autor:
Nuno Fonseca