Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Conto

 

Crimeimpresso

 

Cory Doctorow

 

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Os chuis partiram a impressora do meu pai quando tinha oito anos. Lembro-me do cheiro quente de plástico a derreter no micro-ondas que dela emanava, do olhar de concentração feroz do papá enquanto a enchia com geleia fresca, e a sensação morna dos objectos acabados de imprimir quando eram retirados do interior.

Os chuis irromperam pela porta a brandir os cacetetes, enquanto um deles recitava as cláusulas do mandato por um altifalante. O papá fora denunciado por um dos clientes. A polícia costumava pagar com fármacos de elevada qualidade - dinamizadores de desempenho, suplementos de memória, intensificadores metabólicos. O tipo de substâncias que custavam uma fortuna na farmácia; o tipo de substâncias que alguém poderia imprimir em casa, desde que não se importasse com o risco de ter a cozinha subitamente invadida por seres corpulentos e avantajados a rodopiar cacetetes pelo ar, a partir tudo e todos que se metessem no caminho.

Destruiram o baú da avó, aquele que tinha trazido do país natal. Partiram o nosso pequeno frigorífico e a unidade de purificação por cima da janela. O meu canário escapou de um triste fim, escondendo-se num canto da gaiola quando uma botarrona a espezinhou até só restar uma triste mescla de aço impresso.

Papá. O que lhe fizeram. Quando acabaram, parecia que tinha estado à bulha com uma equipa de rugby inteira. Levaram-no porta fora e deixaram que os jornalistas o vissem bem antes de o atirarem para dentro da viatura. O porta-voz passou o tempo todo a contar que a operação de pirataria de crime organizado do meu papá fora responsável por 20 milhões ou mais em contrabando e que o meu papá, sendo um vilão desesperado, resistira à prisão.

Assisti pelo meu telefone, no que restava da sala, observando o ecrã e pensando como era possível, como era possível alguém olhar para o nosso apartamento minúsculo e o nosso mísero condomínio e julgar que era o lar de um chefe mafioso. Levaram a impressora, como não podia deixar de ser, e ostentaram-na perante os jornalistas, qual troféu. O pequeno altar na cozinha onde costumava ficar parecia terrivelmente vazio. Quando finalmente me levantei e arrumei o apartamento e salvei o pobre canário, coloquei uma misturadora naquele sítio. Era composta por peças impressas, pelo que duraria apenas um mês antes de me ver obrigada a imprimir novos rolamentos e outras partes móveis. Nesses tempos, era capaz de desmontar e remontar tudo que pudesse ser impresso.

Quando fiz 18 anos, estavam prestes a libertar o papá. Já o tinha visitado três vezes - quando fiz dez anos, quando ele fez cinquenta, e quando a mãe faleceu. Há dois anos que não o via, e estava em mau estado. Uma briga na prisão tinha-o deixado coxo, e passavam o tempo todo a olhar por cima do ombro como se tivesse um tique. Senti-me embaraçada quando o minitáxi nos deixou à porta de casa, e tentei manter-me afastada desta figura esquelética e arruinada, ao entrarmos no condomínio e subirmos as escadas.

- Lanie - disse ele, fazendo-me sentar. - És uma miuda inteligente, sei disso. Não fazes ideia onde o teu velho papá poderia conseguir uma impressora e geleia?

Cerrei as mãos com tanta força que as unhas se enterraram nas minhas palmas. Fechei os olhos.

- Há dez anos que estás preso, papá. Dez. Anos. Vais arriscar outros dez anos para imprimir mais misturadoras e fármacos, portáteis e chapéus de estilista?

Sorriu.

- Não sou parvo, Lanie. Já aprendi a minha lição. Não há portátil nem chapéu pelos quais valha a pena arriscar a liberdade. Não vou imprimir essas porcarias nunca mais. - Tinha uma caneca de chá na mão e bebia por ela como se tivesse uísque, cada golo seguido de uma exalação prolongada e satisfeita. Fechou os olhos e recostou-se na cadeira.

- Chega aqui, Lanie, deixa-me murmurar no teu ouvido. Deixa-me contar-te o que decidi durante os dez anos atrás das grades. Vem aqui e ouve o parvo do teu papá.

Senti-me culpada por o ter contrariado. Já não tinha o juízo todo, era evidente. Sabe Deus as coisas que lhe tinham acontecido na prisão.

- O quê, papá? - perguntei, aproximando-me.

- Lanie, vou imprimir mais impressoras. Dúzias de impressoras, uma para cada pessoa. Eis algo pelo qual vale a pena ser preso. Eis algo pelo qual vale a pena arriscar tudo.

 

No espírito pelo qual esta ficção foi disponibilizada na web, encontra-se disponível para cópia e reprodução, sob os termos expressos no website do autor.

Título original: Printcrime

Tradução de Luís Filipe Silva, 2008

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Autor:
Cory Doctorow