Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]

Noveleta

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~ Reconversão de Excedentes ~

Ortus hesitou, sem saber se deveria tomar o assento na cabina ou seguir atrás com a mercadoria. Acenaram-lhe de dentro para entrar pela porta da frente. O condutor exigiu o processo pessoal para dar uma vista de olhos e só depois seguiu viagem. Revelou-se um tipo bastante amistoso, com muito para contar.

- És um cabrão cheio de sorte. Eu fiz o curso com uma bruta nota e olha o que me calhou: guiar carripanas de manhã à noite; e não me posso negar a nada. Ainda a semana passada tive de ir a um bairro sublevado. Puseram barricadas nas entradas e têm os telhados carregados de metralhadoras. Ali não entra nem sai ninguém, só fornecedores. Quando o meu patrão recebeu a encomenda quem é que tinha de calhar na rifa? Eu, claro. Mas ao menos deram-me uma caranguejola bem blindada.

«Mal fui barrado no primeiro posto da polícia caíram dois petardos dos rebeldes, mesmo bem apontados. Fiquei com o caminho livre e avancei. Mas o cerco estava montado a preceito: atrás de mim começou a chover metralha das torres de segunda linha. Virei num cruzamento para escapar e dei de caras com uns gajos todos couraçados que deviam ser a linha avançada. Já deviam saber que eu vinha, porque nem deram tempo para respirar. Nisso apareceram comandos dos rebeldes lançados de helicóptero...»

A fantástica epopeia continuou a ser laboriosamente tecida ao longo do percurso. À medida que tendia para o clímax conseguiu distrair Ortus dos campos cinzentos e da estrada esburacada. O jovem só reparou que entravam no perímetro urbano quando o condutor cortou abruptamente a linha de pensamento para um comentário extemporâneo:

- É como eu te dizia: és um cabrão com sorte. Não sei se sabes mas tenho ordens para te entregar numa Domus. Não sabes o que é? É uma cidade dentro da cidade. Rodeada de muralhas, ultra moderna, auto-suficiente. Não há lá gente reles, nem sei para que te querem; só se for para lhes limpares o cú depois de cagarem. Olha que quando apanham um tipo como nós lá dentro sem autorização tratam-lhe da saúde logo ali. Um balázio na pinha, no meio da rua.

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Quando Ortus se apresentou no guichet sentiu uma pontada de orgulho pela auspiciosa oportunidade de emprego. O funcionário conferiu o nome e número de série inscrito na papelada e pediu:

- Deixa só ver se os números batem certo.

Ortus levantou a manga do fato para mostrar as tatuagens de identificação e o homem deu-se por satisfeito.

Os engajados daquele dia aguardavam num corredor ao longo de vários bancos corridos. Constituíam um grupo bastante heterogéneo, com gente a aparentar as mais diversas proveniências e aptidões profissionais. Talvez fosse por isso que ninguém se dispunha a entabular conversa com o parceiro do lado. Ortus não quebrou a regra do silêncio e esperou pacientemente.

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A todo o comprimento do corredor, de um dos lados, estavam espaçadas portas de madeira onde assomavam indivíduos para chamar cada convocado à vez. Muito tempo depois Ortus foi conduzido a um gabinete. O homem sentado à secretária levantou a cabeça dos papéis por instantes e depois continuou a escrevinhar. Um outro, que aguardava de pé, agarrou no braço de Ortus e conduziu-o de volta ao corredor. Saíram juntos para uma rua pavimentada banhada pelo sol incomodativo do meio da tarde.

O percurso a céu aberto terminou do outro lado da rua, onde passaram a um túnel percorrido por tráfego intenso de peões e veículos. O guia cuidou que Ortus não se perdesse, mantendo-lhe a manápula firme em torno do braço. Seguiram a pé, desbravando a confusão, e por fim chegaram a uma pequena praça rodeada de paredes envidraçadas. Uma tabuleta discreta dava nome ao local: «Estação de Tratamento e Reciclagem n.º 36». Lá dentro estavam três tipos vestidos de branco sem fazer nada, sentados a secretárias cobertas de ecrãs.

O acompanhante de Ortus deixou-o à vontade e foi pôr-se à conversa com um dos homens. Passados instantes o seu interlocutor fez sinal a Ortus para se aproximar: - Olá puto! Vai lá dentro e come qualquer coisa com a malta.

O recém-chegado passou à saleta contígua onde mais pessoas com vestes brancas partilhavam uma refeição ligeira. Os comensais deram as boas vindas a Ortus e cederam-lhe um lugar à mesa. Entretiveram-se a trocar comentários engraçados sobre a sua aparência até que um se lhe dirigiu directamente:

- Agora és dos nossos; o colega mais novo. Vais ter de ser praxado!

- Bolas, tu és tramado! - comentou outro. - Então não achas que o puto já vai ter castigo de sobra? O que lhe calhou não é coisa que se deseje nem ao pior inimigo.

A opinião foi corroborada por mais alguns até alguém interpor para aliviar as consciências:

- Mas de onde pensam vocês que vem este piolhoso? Se ainda estivesse nos depósitos de excedentários já tinha morrido à fome. Saiu-lhe foi a sorte grande.

Prosseguiram a animada troca de pontos de vista sobre as novas atribuições de Ortus, enquanto este cuidava de ficar com a barriga suficientemente cheia para não se sentir desanimado.

Findo o repasto um dos colegas auto nomeou-se para o levar ao respectivo posto de trabalho.

- Vamos lá pá, eu explico tudo pelo caminho. Não penses que vens para aqui fazer ronha. Esta é a Estação N.º 36 mas na verdade é a única que conta. Se paramos um dia, e de longe em longe acontece, ficam com lixo até ao pescoço.

«As coisas passam-se a dois níveis. Nós cá em cima controlamos tudo e resolvemos qualquer problema que apareça. Vocês actualmente só servem para descargo de consciência; ou então estão cá porque ninguém se deu ao trabalho de alterar os regulamentos. O vosso trabalho é andar lá por baixo a passear, de preferência sem mexer em nada. Se não se derem ao incómodo de apresentar relatórios também ninguém dá por isso. Ora cá estamos! Vou abrir a comporta.»

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Autor:
Telmo Marçal