Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Noveleta

 

Reconversão de Excedentes

 

Telmo Marçal

 

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I

A Directora entrou por uma porta lateral. Deslizou até ao centro do estrado e gozou as expressões de ansiedade atormentada nas faces dos formandos. Cravou um olhar de desdém em cada um deles, demorando todo o tempo que entendeu necessário. A plateia manteve-se petrificada.

De dentro da batina negra a Directora retirou um envelope avantajado que deslacrou teatralmente. Amachucou os restos do sobrescrito e ergueu em triunfo uma resma de espessas folhas timbradas. As respirações de um cento de adolescentes no acanhado auditório tornaram-se ofegantes e o fedor a suor era quase sólido.

A matrona pigarreou e começou a guinchar nomes e números acentuando bem todas as sílabas. Enunciava-os na ordem determinada pelo algoritmo de classificação final; cem nomeações secundadas pelo real valor do sujeito, traduzido objectivamente em dígitos.

O debitar da primeira vintena foi provocando exclamações de júbilo e suspiros de inveja através da sala. Ortus permaneceu impávido, a aguardar o baixar da fasquia. Nem nos devaneios mais inconscientes se guindara a paragens tão altaneiras; os patamares máximos da sua ambição situavam-se mais para baixo. Começou a sentir alguma emoção apenas quando a relatora dobrou o quinquagésimo classificado.

Já pouco faltava para ser proferido o octogésimo nome ordenado na lista - a fronteira que delimita o lote dos imprestáveis. Mas um pouco antes foi enunciado o nome e número de Ortus, seguidos do respectivo merecimento. A média ponderada de quatro anos esforçados bastava por uma unha negra para ter direito a ostentar insígnias de profissional. Era a diferença entre dispor de um prazo razoável para se engajar num emprego ou ser recambiado de volta aos depósitos de sobrevivência, sem direito a ser sorteado para nova oportunidade.

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O sol ainda não se insinuava através das gretas da cobertura. As trancas do dormitório foram corridas e pelo corredor central avançaram dois Orientadores. Gritavam à vez pelo nome de Ortus e de passagem aproveitavam para espertar todos os dorminhocos com biqueiradas e safanões. Quando o visado perfilou frente ao catre arrastaram-no para fora sem perder tempo com explicações. Num gabinete do primeiro andar, desprovido de grades nas janelas, estava um Orientador de razoável patente à sua espera.

- Alegra-te rapaz! Conseguimos finalmente arranjar-te colocação. Não é grande coisa mas achamos que consegues safar-te. Vai preparar-te, partes ainda esta manhã. Toma lá os papéis e boa sorte.

Quando o entregaram ao porteiro Ortus estava bem desencardido, dentro duma farpela lavada e com umas colheradas de papa no bucho. Depois de observadas as formalidades apontaram-lhe uma carrinha que aguardava no pátio do Centro de Recuperação de Indigentes.

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Autor:
Telmo Marçal