Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]

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~ Leituras ~

Ele já devia ter andado a pesquisar o assunto, porque a seguir mostrou-me outra página de 2003, que o Googverse deve ter apanhado nalgum arquivo, onde se falava da passagem da leitura em voz alta para a leitura silenciosa, que ocorreu na Idade Média entre o final do século 12 e o início do século 14. Uma transição que levou mais de um século! Antes que o tradutor interviesse, disse-lhe:

- Deixa estar a versão inglesa.

Esta segunda página discutia as razões dessa passagem, contrapondo os argumentos de McLuhan (1911-1980) que achava que a cultura oral medieval tinha sido destruida pelo aparecimento da imprensa e de Saenger que opinava que essa mudança era o resultado da adopção do espaçamento entre palavras nos textos escritos.

- O que vamos fazer é recriar uma dessas sessões de leitura, descobrir o prazer da oralidade.

- E a leitura vai ser onde?

- Na Central Tejo, aquele edifício de tijolo que já se vê daqui.

Manobrámos junto ao cais flutuante, amarrado no topo da ensecadeira, onde já estavam mais algumas pequenas embarcações. Chegaram entretanto dois ou três táxis que largaram passageiros. Um passadiço ligava directamente o cais com o primeiro andar do edifício.

Entrámos, passámos pelos procedimentos de segurança standard - padrões retinais, impressões palmares - e juntámo-nos ao grupo que se ia formando. Luís conhecia muitos dos presentes, a quem cumprimentava e me apresentava.

Era na maior parte gente assim a atirar para cota, roupas um bocado retro, alguns com piercings - que estão totalmente out há pelo menos 10 anos! - mas havia um certo companheirismo no ar que tornava o grupo simpático. A sessão era organizada pelo Clube Retro e o programa incluía, antes das leituras, uma visita guiada à Central.

Ao contrário do que se esperaria num museu - um robot-guia, com uma IA que pacientemente responde às perguntas dos visitantes, mesmo as mais rebuscadas - aqui tínhamos uma visita guiada por um humano. Isto era uma tarde de surpresas!

Ficámos a saber que no início do século 20 aquela central queimava carvão (!) para produzir electricidade. O carvão era queimado nas fornalhas, a água que passava nos tubos era vaporizada e o vapor fazia rodar as turbinas que accionavam os geradores eléctricos. O vapor era depois condensado e a água líquida bombeada de volta à caldeira para ser novamente vaporizada.

Imaginando as nuvens de fumo negro que sairiam pelas chaminés da central, dei comigo a pensar o que seria hoje o mundo se nos anos 30 a fusão nuclear não tivesse provado ser uma opção viável.

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Mas sendo embora pelos nossos padrões actuais uma tecnologia tosca, não posso deixar de reconhecer uma certa beleza às tubagens de cobre, aos manómetros de latão, às fornalhas de ferro fundido; podemos ver em toda este equipamento pesado, volumoso, ineficiente, os passos titubeantes da humanidade a tentar dominar a energia.

Terminada a visita - durante a qual fui tirando fotos e subvocalizando notas, para vir a elaborar a proposta de um programa de holovisão sobre tecnologias antigas - fomos levados para uma sala com assentos dispostos em semi-círculo, com o ponto focal ocupado por uma mesa e duas cadeiras, onde estavam sentados o actual presidente do Clube Retro - disse-me o Luís em voz baixa - e o convidado que iria fazer a leitura.

O presidente fez uma breve introdução e apresentou o orador como um estudioso da literatura da segunda metade do século 20. Terminou lembrando aos presentes que, para melhor fruirem da experiência que iam ter, suspendessem as ligações à Wholenet.

O orador levantou-se e tirou do bolso uns óculos que colocou na face. Mesmo quem tenha relutância em relação à cirurgia optocorrectiva, pode usar lentes de contacto, mas óculos! Acho que há pessoas que levam a filosofia retro longe demais!

Em seguida, pegou no livro que estava pousado na mesa - e a atenção da assistência imediatamente convergiu para aquele objecto, cuja raridade lhe dá um valor de mercado cada vez mais alto - e disse, com uma voz de timbre agradável:

- Vou ler alguns capítulos de As Cidades Invisíveis de Italo Calvino, um escritor italiano que viveu entre 1923 e 1985. Esta edição, traduzida do original italiano, foi publicada em Portugal pela Editorial Teorema.

Agradou-me a escolha, porque já conheço parte da obra. Há cerca de 2 anos, um colega meu fez um holofilme adaptando uma parte das Cidades, que até apanhou um 2º prémio no Festival Mundial da Holovisão, na categoria «Adaptação de obras literárias».

Mas quando começou a leitura, senti um choque.

Embora soubesse que não era nada disso, estava inconscientemente ainda à espera de um holofilme, de ver surgir as imagens envolventes que nos fazem mergulhar no ambiente descrito. As palavras que me chegava aos ouvidos eram apenas isso: palavras, sons, e embora houvesse nelas uma certa musicalidade, e um ritmo agradável, não correspondiam a imagens. Olhei disfarçadamente em volta. Os outros assistentes tinham um ar calmo, relaxado, os olhos fixos no orador ou num ponto afastado, pareciam deixar as palavras entrar pelos ouvidos como uma cascata musical.

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Autor:
João Ventura