Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]

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~ Leituras ~

Quando monto o assento de trás, a consola mostra imediatamente uma webcam e um monitor, onde aparece a cara do Luís, sorridente. Enquanto arrancamos, ele vai-me explicando o funcionamento do brinquedo, e ilustra as explicações fazendo aparecer no ecrã desenhos ou esquemas do manual da mota, armazenados no computador de bordo. Mergulho num tutorial completíssimo, e fico a saber que o hidrogénio para a célula de combustível vem de um reservatório, o oxigénio é extraído do ar através de uma membrana semi-permeável, e o único impacto ambiental causado é um pequeno aumento de vapor de água na atmosfera. A energia eléctrica produzida na célula vai alimentar um motor eléctrico, que acciona o hélice propulsor. E toda a cablagem é feita de neoxid, o novo material patenteado pelos coreanos que é supercondutor à temperatura ambiente.

O Luís conduz cuidadosamente em direcção ao rio, passamos debaixo do arco, entramos na Praça do Comércio, onde as arcadas a toda a volta funcionam como um amortecedor da ondulação. Navegamos junto à estátua de já não me lembro que rei, mudando de direcção com frequência para evitar as embarcações com turistas, principalmente orientais, que hologravam tudo em volta... Na brincadeira, comento com o Luís que deve haver mais gigabytes de imagens de Lisboa no Japão do que em Portugal.

Avançamos um pouco para a zona que no princípio do século era o leito do rio e viramos para estibordo, rumando agora em direcção à foz, numa trajectória paralela ao monocarril do maglev. Passamos debaixo da ponte, já desactivada, mas que foi deixada porque a desmontagem teria sido muito cara - o aço deixou praticamente de ter valor no mercado com o aparecimento dos novos materiais de construção compósitos - e observamos junto ao pilar norte uma dúzia de saltadores a fazer bungee jumping. Ouvimos também cá em baixo o barulho das turbomotas que utilizam o tabuleiro como pista de corridas.

Está uma tarde agradável, uma brisa fresca percorre o estuário, e o Luís começa então a contar-me onde vamos.

- Vamos ouvir ler.

Ao princípio pensei ter ouvido mal. Desde a infância sabemos que ler é uma actividade individual, que se faz em silêncio. A aprendizagem da leitura é neuroinduzida na primeira infância - não temos sequer a lembrança de aprender a ler - e de facto associamos a leitura em voz alta a certas técnicas usadas na terapia de deficientes profundos. Depois assumi que ele estava no gozo, o que acontece frequentemente, e resolvi continuar no mesmo registo.

- Já agora, vais-me dizer que eles vão ler livros.

E reforcei a palavra livros com um sorriso sarcástico.

- Sim, claro, de outra forma não tinha piada.

- Estou a falar de livros daqueles com folhas de papel.

- Eu também, os outros não são livros, são e-books.

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Os livros em papel são hoje objectos raros devido ao acidente ocorrido em 2013, quando uma estirpe de bactérias que estava a ser desenvolvida para consumir os plásticos - principal componente dos resíduos sólidos urbanos - sofreu uma mutação e os «bicharocos» tornaram-se apreciadores de papel. Enquanto não desenvolveram e produziram uma anti-bactéria, a maior parte das bibliotecas praticamente desapareceram.

- Tás a gozar, não tás.

- Nunca falei tanto a sério na minha vida.

Entrei em modo accept e disse-lhe:

- Fala.

Continuávamos a deslizar com os edifícios à nossa direita, que em consequência da subida do nível da água tinham tido destinos diversos: alguns, agora semi-submersos, ou totalmente debaixo de água, tinham sido abandonados à sua sorte; em volta de outros tinha sido construída uma ensecadeira, e ali ficaram, protegidos da água, a lembrar navios numa doca seca. Finalmente, os mais importantes, com o apoio financeiro da Unesco e a contribuição da engenharia moderna, tinham sido literalmente levantados das fundações e assentes de novo numa plataforma mais elevada. Em relação à superfície da água, estavam assim na mesma posição do que antes da grande subida.

- Bem, como sabes,nos primórdios da humanidade, o conhecimento era transmitido oralmente...

- Hei, eu estudei história, e disso ainda me lembro...

- Pode pensar-se que a invenção da escrita, com a materialização dos conceitos, factos, opiniões na página impressa, tivesse destruido a oralidade. Mas não foi isso que aconteceu.

E passou-me para o monitor uma página web do princípio do século (de Novembro de 2001!), com uma citação do curador de manuscritos do Museu Paul Getty. Comecei a ler:

«Perhaps the most marked difference between»

Abriu-se uma janela sobre a página com a tradução em Português:

«Talvez a diferença mais marcada entre as práticas de leitura moderna e medieval foi a prevalência de ler em voz alta na Idade Média. Lendo em silêncio era incomum, e lendo era usualmente uma colectiva experiência. Crónicas e romances vernáculos eram lidos em voz alta na corte e passagens bíblicas eram recitadas nos serviços religiosos.»

Estes tradutores automáticos ainda deixam muito a desejar!

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Autor:
João Ventura