Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]

Conto

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~ O Paciente ~

- Ramirus Demétricos - balbuciei.

- Tem cá ficha ou é a primeira vez?

Que raio queria ele dizer com aquilo da ficha? Hesitei. O homem levantou a cabeça e fitou-me. Era demais: cara branca sem cicatrizes, dentes completos, olhos luminosos, nenhuma marca ou tatuagem. Mais um dos níveis superiores? Alguma coisa tinha de lhe responder.

- Não senhor, não tenho fichas.

- Compreendo. Vamos deixar as formalidades para depois. O que é preciso é que o senhor seja atendido, não é verdade? Queira aguardar vez na sala de espera.

Acenei a minha concordância e estendi a mão para recolher a placa. O jovem debruçou-se sobre a mesa, agarrou-me a mão e sacudiu-a delicadamente. Voltei para trás meio atarantado. Não tive oportunidade de seguir o conselho da prudência, que era procurar a saída mais próxima e tentar escapar; um Zelador aproximou-se a sorrir e apontou-me a porta de uma das salas de espera.

Desta vez sobravam cadeiras na sala. Alguns, mais abatidos, até estavam deitados em macas. Dadas as circunstâncias arrisquei a tomar de imediato um dos lugares disponíveis. Ninguém protestou. O silêncio na sala só era interrompido pelas convocatórias do altifalante.

Quando ouvi o meu nome levantei-me num salto. Não sabia bem que fazer, pois ainda não tinha descoberto onde se formava a fila da triagem. Senti uma mão a pousar no ombro.

- É o senhor Ramirus? Dirija-se ao consultório número 28. É esse aí à sua frente.

Esgueirei-me para dentro do consultório sem olhar para trás. Mais uma sala quase deserta. Só eu e um homem de bata impecavelmente branca. Deixei bater a porta e preparei-me para o pior. Sempre ouvi dizer que eles se dão a cerimónias antes de aplicar a receita final. Decidi tomar a iniciativa:

- Sou um cidadão conscencioso e respeitador. Ultimamente não tenho sido muito útil à nossa comunidade. É porque estive doente, uma coisa de nada que já passou. Está a ver Doutor? Mais robusto que nunca e pronto para o trabalho. Pode até ser nas minas ou em órbita. Assino qualquer contrato. Já me sinto muito melhor.

- Assim é que é falar, jovem - respondeu friamente o meu carrasco. - De qualquer modo vamos aproveitar para lhe fazer um exame completo. Sente-se, por favor.

Obedeci, claro. E a tortura começou. Para preliminares obrigou-me a mijar para um frasco e sangrou-me com uma seringa. De seguida aplicou fortes apalpadelas em vários sítios do corpo, primeiro com as mãos e depois com instrumentos metálicos. Mas tudo muito brandamente. Estava a medir a minha resistência, ou a identificar os pontos onde a eficácia do suplício fosse maior. Se calhar iam utilizar métodos biológicos. O sangue e a urina deviam servir para afinar uma cultura de micróbios específica.

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Sempre que não tinha nada enfiado na boca, ou não me era exigido silêncio absoluto, continuei a implorar piedade. Confessei tudo, mais algumas coisas que nem tinha feito. Denunciei praticamente toda a gente que conhecia. Ofereci-me para trabalhar com os Zeladores, como agente infiltrado. Até que o homem se deu por satisfeito e voltou a sentar-se. Olhou-me com uma expressão preocupada. Era chegado o momento da sentença.

A porta abriu-se atrás de mim. A sala foi invadida por um grande grupo de pessoas, a maior parte humanos.

-oOo-

- Um dos nossos consultórios, Embaixador. Aqui cada paciente tem direito a um tratamento personalizado, assegurado por um profissional credenciado e competente. Apresento-lhe o Doutor Jamiliares. Um homem de elevado sentido cívico. É chamado a assistir as mais altas personalidades da nossa comunidade. Todavia insiste em cumprir parte da sua vocação nos níveis socialmente mais humildes.

A comitiva abafou um «Ooh» de admiração e reconhecimento. A personalidade resplandecente designada por Embaixador levantou uma sobrancelha e inspirou ar para o discurso.

- Estou deveras surpreendido com tudo o que me tem mostrado, Senhor Administrador. Ao longo dos anos chegaram-nos tantos boatos... digo mesmo, tantos testemunhos, procurando convencer-nos que os seres desta Unidade Produtiva viviam uma existência deplorável. Viajei de muito longe para ver com os meus próprios olhos. E até agora só encontrei motivos para louvar a Administração.

«Por certo que uma grande comunidade gera sempre a sua percentagem de párias e deserdados da sorte. A ética rigorosa dos Mandamentos Contratuais obriga os concessionários a suportar os custos inerentes. Todos os seres pensantes têm direito à dignidade, a qual constitui em primeira análise a missão fulcral da Companhia. O lucro e o poder mais não são do que consequências inerentes à nossa condição civilizadora. Não fraquejaremos jamais. A tocha flamejante do amor ao trabalho, como forma de realização suprema dos seres pensantes, iluminará por nosso intermédio as mais recônditas paragens da galáxia.»

Até o Doutor Jamiliares se juntou aos aplausos, depois de secar ostensivamente uma lágrima. Eu também estava emocionado, e com um ensejo enorme de meter a colherada para implorar clemência. Mas o homem empertigado ao lado do Embaixador foi mais expedito.

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Autor:
Telmo Marçal

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