Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]

Conto

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~ O Paciente ~

Partida do destino: fui atendido por um Zlorthil. Ostensivamente fêmea, já que fazia questão de usar saias. Meti o despeito no saco e respondi às perguntas com a máxima polidez. Quando se deu por satisfeita, a Zlorthil apontou um comando e o meu medalhão ficou a piscar com a cor amarela. Eu teria preferido o verde; segundo Aldus, um indivíduo classificado a verde levava mais de quatro horas a ser atendido.

- Nada de bancos para amarelos - gritou o Zelador local.

Em contrapartida tive direito a uma golada de água e a chupar no tubo da comida. Mas apareceu-me pela frente um companheiro, com a cara coberta de sangue seco, que me arrancou o tubo com um puxão.

- Olha lá! Cara de cú mal enrabado! - disse-lhe eu. - Ainda não te puseram bom de uma e já queres levar outra? Vou-te foder os cornos.

Seguia à risca os avisos de Aldus: ali dentro podia provocar à vontade mas nada de apelar ao físico. O rapazola até se engasgou. Largou o tubo e espetou-me duas chapadas. Vacilei mas não fui ao tapete. De repente abriu-se uma brecha na roda que se formara em volta. Saltaram para o meio dois tipos fardados a negro. Aviaram-lhe valentemente; enquanto ali estive não dei por que se voltasse a levantar. Curiosamente, ninguém se deu ao trabalho de o levar para dentro. Como compensação tive direito a emborcar mais uma dose de pasta.

- Amarelo Ramirus Demétricos. Fila da sala 12.

Aquela era uma fila rápida. Sempre a andar até transpor a porta da sala, e lá dentro o ritmo pouco abrandou: estavam três médicos a atender os pacientes. A mim calhou-me um velhote que parecia já ter passado por melhores dias. Tinha a calva manchada de cinzento e a bata toda besuntada. Mas era extremamente profissional: conseguiu fazer o diagnóstico e determinar a cura sem levantar a cabeça dos papéis. Gostei de falar com ele. Mesmo depois de ter tocado o besouro, a assinalar o fim do tempo de consulta, ainda me disse:

- Agora vê lá meu rapaz! Não te metas em aventuras. Deita-te a horas e come muitos vegetais. Olha que com as viroses não se brinca. Abre a mão e pega lá dois comprimidos.

E foi assim, como num sonho. De repente tudo terminara e eu estava novamente a palmilhar ruas. Mas agora já sabia o caminho. Um ou dois dias de intervalo, para não abusar, e lá arranjaria forma de regressar ao conforto do hospital.

-oOo-

Achei estranho. O beco onde se aguarda vez estava apinhado até à boca. Na própria rua, a atrapalhar o trânsito, acumulavam-se centenas de pessoas. Os Zeladores rodeavam a multidão mas não estavam a incomodar. Primeiro pensei que fosse uma purga. Tinham juntado ali a malta antes de os meter nos cargueiros. Mas a última fora há tão pouco tempo...

Decidi aguardar para ver o que acontecia. Reparei num indivíduo a abandonar o magote e encaminhar-se para os meus lados. Aproveitei para o interpelar:

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- Ora viva, amigo! Então que raio se passa aqui hoje?

- Ninguém sabe. Eu cá desisti. Cheguei há mais de três horas. Estou mesmo à rasca. Vou-me embora antes que tombe e alguém me passe por cima.

Reparei que o tipo estava todo chagoso e dei logo um passo atrás.

- Hé! Diga-me só uma coisa: eles hoje não estão a atender?

Respondeu-me por cima do ombro, enquanto se afastava a cambalear:

- Acho que sim, só que demoram mais do que o costume.

Eu cá não tinha pressa. Dirigi-me em linha recta para a multidão, sempre de cabeça baixa, temendo levar alguma bastonada. Deixaram-me passar sem problemas. Aguardei. Nesse dia até já tinha comido; uma incursão sorrateira à cinta dos despejos. Podia aguentar perfeitamente mais de dez horas sem incómodo de maior. Mas nem foi preciso tanto.

No fundo do beco esperava-me uma surpresa. A cada lado da porta postavam-se dois jovens, com fardas como nunca tinha visto. Verdes, luminosas, bem vincadas, com dísticos brilhantes pregados no peito. Não traziam capacete, pude-lhes ver a cara. Tinham ar de primeiro nível, como as fotografias das revistas: pele lisa, dentes brancos e cabelo exageradamente rapado. As mãos pendiam soltas, enluvadas, sem empunhar bastões ou chicotes. Quando chegou a minha vez fiz uma pausa entre os dois, à espera do empurrão no cachaço.

- O senhor não deseja entrar? - inquiriu um dos jovens sem desfazer o sorriso.

Só quando repetiu a pergunta é que compreendi que era comigo.

- Sim... Sim! Estou muito mal. Por piedade Senhor. Vou fazer o tratamento. É só hoje, prometo não voltar a incomodar.

- Então faça o favor de entrar.

Aquilo tresandava a ratoeira. Mas as opções eram muito limitadas. Avancei a passo de corrida.

A sala era a mesma só que não parecia: faltava-lhe o calor da multidão. O ar tinha tanto oxigénio que queimava os pulmões. Os escarros, sangue, vómitos e beatas haviam desaparecido. E o cheiro? Tão estranho; forte e agoniativo. As poucas pessoas dispersas pareciam tão espantadas quanto eu.

Não descobri um único recepcionista electrónico. Ao longo de toda a parede estavam dispostas mesas, com gente de carne e osso atrás de cada uma. Comecei a ficar apreensivo e pensei que seria melhor recuar para ganhar perspectiva sobre a situação. Mas a pessoa da mesa mais próxima acenou veementemente e chamou:

- Hé! O senhor. Faça o favor de avançar para fazermos a inscrição.

Dei um passo em frente, a tremer da cabeça aos pés.

- Como se chama?

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Autor:
Telmo Marçal

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