Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]

Conto

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~ O Paciente ~

Mal tive tempo para as despedidas. A maca rodopiou para dentro de um buraco que se abriu na parede. Acelerei no tubo de transporte até ser despejado na rua, muito atordoado.

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Tinha conhecido o paraíso. Ar filtrado, de certeza com mais de vinte porcento de oxigénio, temperatura constante, comida e água desinfectada, modos educados e boa companhia. Meti na cabeça que havia de lá voltar. De preferência através de uma porta; nos tubos acabo sempre por desmaiar.

Eu sou um tipo sabido e tenho conhecimentos. O amigo Aldus era a pessoa indicada para me dar bons conselhos.

Aldus é um senhor: tem residência fixa e cartão plastificado que lhe dá direito a um saco de comer todas as semanas. Encontrei-o em casa. Chamei através da grade metálica encostada ao lancil e convenci-o a deixar-me entrar. A experiência de Aldus com hospitais podia ser uma ajuda preciosa.

Em tempos, Aldus tinha um contrato de trabalho e habitava cinco níveis acima. Conta que vivia numa casa com dois quartos, ambos de tamanho suficiente para um homem se deitar ao comprido (eu desculpo-o destas pequenas bazófias e nunca lhe chamei impostor). Um dia a pega do cadinho partiu-se e ele apanhou na cara com umas gotas de metal líquido. Estava sem capacete; tinha-o posto a arranjar e não havia sobressalente. Claro que a vida nunca mais foi a mesma.

A actual casa de Aldus não tem altura para ficarmos de pé, mas se nos acocorarmos, um frente ao outro, cabem perfeitamente duas pessoas.

- É como te digo - expliquei -, arranjo-te ligaduras novas para as feridas e com sorte até uma pomada. Só preciso que me ensines a melhor maneira de ser atendido no hospital.

-oOo-

Existe uma pequena porta onde toda a gente é autorizada a entrar na sua vez. Já tinha ouvido falar, mas julgava que era uma daquelas histórias malucas que se contam para passar o tempo. A porta fica no enfiamento de um beco muito estreito e comprido; só quando se chega mais ou menos a meio é que nos apercebemos da multidão compacta. Aldus preparou-me para isso, o único segredo é ter paciência. Tentar furar através daquela malta dá mau resultado: fica-se estendido ao comprido com as tripas de fora.

Quando os porteiros me empurraram para dentro lacrimejei de contentamento. Com o impulso quase me estatelava no chão, mas consegui manter a compostura. Um Zelador especial tocou-me as costas com o bastão, a indicar a fila que devia tomar para fazer a inscrição. Assobiei baixinho; aquela era uma fila digna de se ver. Retorcia-se em várias voltas no espaço central da grande sala.

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Constatei com os meus próprios olhos o que Aldus me explicara sobre o método de acelerar aquela fase. Quem se deixava cair era, mais tarde ou mais cedo, transportado de carrinho e desaparecia por uma das portas. Mas eu sabia onde estava a armadilha: qualquer desfalecido apanhado na batota tinha um encontro com o ferro em brasa; ficava com uma recordação do feito vincada na testa. E é muito difícil sobreviver por estas bandas depois de marcado. Perdem-se todos os direitos de cidadania.

Quando chegou a minha vez coloquei logo a palma direita na ranhura. Ouviu-se uma voz delicada:

- Ramirus Demétricos. Confirma? Sim ou não?

- Sim, sim...

- Esteve internado ontem. Teve alta ás 15 horas, 36 minutos. Confirma? Sim ou não?

- Sim, é verdade!

- Que queixas apresenta? Seja sucinto e objectivo.

- Tonturas, muito fortes. Já hoje desmaiei outra vez.

O recepcionista, electrónico mas inteligente, fez uma breve pausa e concluiu os seus deveres para comigo:

- Apanhe a ficha que vai cair no tabuleiro. Desenrole o fio e pendure-a no pescoço. Caminhe até chegar à parede que se encontra do lado oposto. Siga para a sua direita. Entre no corredor. Atravesse a porta número 26. Mostre a ficha no guichet à entrada.

Fiquei deliciado quando o guichet da sala de espera informou que tinha direito a um lugar sentado. O terceiro banco da nona fila ser-me-ia disponibilizado no tempo estimado de 32 minutos. Coloquei-me de imediato em posição de o tomar.

Sentei-me repimpado e distribuí cumprimentos à esquerda e à direita. De um lado estava uma mulher, com uma criança nos braços, que só respondeu com grunhidos. Reparei que a criança estava morta há alguns dias, a julgar pela cor da pele. No lado contrário estava abancado um adaptado.

- Então o que o trás por cá, amigo? - perguntei eu, para meter conversa.

Ele aproximou-se e confidenciou entre dentes:

- Reformei-me há dois dias. Já não preciso do terceiro braço. Vou dizer que funciona mal para ver se mo tiram.

Ficámos ali na cavaqueira até o chamarem. O lugar foi ocupado por um Zlorthil, não sei dizer se macho ou fêmea. Não me rebaixo a falar com macacões peludos. Apreciei o ambiente até ouvir o meu nome ao altifalante, ordenando que tomasse fila para a sala de triagem.

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Autor:
Telmo Marçal

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