Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Conto

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~ La Nausée II ~

E então torna-se demasiado forte. A consciência do auto-isolamento raramente consegue ser encarada de frente. Eu fico fraco, canso-me. Entro em desespero. Tenho as palavras por companhia, os relatos dos viajantes, e os livros de factos de que a História é tecida. Tenho os meus diagramas e os esquemas de composição dos capítulos. Tenho, por fim, quatro centenas de páginas impressas, ainda por rever, que encerram o fruto de quase meio milhar de horas solitárias. Quedam-se num canto do quarto, num caixote de papelão que serviu de embalagem ao papel da impressora. Mesmo nesta hora, deveriam dizer-me alguma coisa. Mas não: ficam mudas, silenciosas. Não significam nada, excepto tempo desperdiçado. As palavras não fazem companhia a ninguém.

Saí para a rua, porque se tornou demasiado forte. O barulho esbofeteia-me com a agressividade de uma mão irada, e os focos devoram a cor aos meus olhos. Afasto-me para os cantos, deixo passar os foliões. Troncos nus, masculinos e femininos, peles pintadas de bronze a imitar estátuas que ganharam vida passam por mim, envoltas em laços de papel, serpentinas coloridas, e adornos brilhantes. As caras estão tapadas, cobertas com máscaras de papelão, porque há que entrar no novo milénio a representar, a fingir que não somos os loucos que desejaríamos ser; porque há que esconder o rosto. Embato num e noutro participante mais isolado, encostados à parede a verem o zoológico passar. Encaram-me como se vissem um insecto. Receoso do ambiente, das facas escondidas nas algibeiras e da permissividade da ocasião, não perco tempo a afastar-me.

Atrás da primeira onda, vêm mais, nos carros, a buzinar incessantemente. Nem um único polícia à vista, noto com surpresa. Mas não é de espantar. Estarão mais seguros as esquadras, a festejar uns com os outros, pensando na família ou atendendo emergências casuais e controláveis. Também eles não querem morrer esta noite.

Vidros começam a ser partidos. Montras. A festa está a engrossar e eu devia voltar para o hotel. Este não é o meu Povo. Esta não é a minha terra. Sou um estranho em terra estranha, e se julguei que conseguia iludir a solidão, misturando-me com as gentes, enganei-me. Continua no meu encalço, e não está longe.

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E na multidão encontram-se todos os símbolos que continuam a fazer de Paris a cidade moderna de que sempre se orgulhou ser, e por vezes, a cidade dos excessos. Dançarmos bailavam pelas ruas, despidos, agarrando-se a pares do outro sexo, e envolvendo-se em práticas, reais ou simuladas, de actos sexuais, no meio de todos; atrás, vinha a facção dos travestis dos Campos Elísios, e mais atrás seguiam os demasiado bêbados, que não aguentavam o ritmo da marcha, e se punham a cantar, a lutar entre si, e a partir as garrafas contra as casas. Refugiei-me numa porta de escada, que, mal-grado meu, descobri já estar ocupada. Dois corpos completamente nus entregavam-se a uma luta íntima, sob a luz que transbordava da rua. Com espanto, notei que eram duas mulheres, beijando-se com sofreguidão, uma esmagando os seios da companheira, enquanto a mão da última se encontrava entre as pernas da primeira, entregue a uma actividade ritmada. Agiam como se o mundo fosse acabar nos próximos minutos, como se nunca pudessem voltar a fazer amor. Fascinado, fiquei a observá-las, sem conseguir desviar os olhos, enquanto lá fora a festa passava. Não me notaram. Não se importavam com nada, a não ser com as vozes pessoais dos seus próprios corpos, e com o objectivo de se saciarem. Duvidava que cada uma notasse sequer que a companheira existia, que não estava a fazer amor consigo própria. Era como aqueles espectáculos de live sex, em que várias pessoas fornicavam de diversas formas no meio de restaurantes, sobre palcos especiais, e aos quais se chamava o último grito da pop culture. Era um espectáculo egoístico, porque rejeitava os que não possuíam parceiro, fazendo-os ter consciência de que não estariam completos; mas, simultaneamente, era um espectáculo que atraía, e fascinava. Era hipnótico. Os olhos não se desviavam da actividade, porque encontravam alguém, ou algo, que conheciam bem, ou queriam conhecer. A culpa era do corpo, não da mente. Ao encontrar um diálogo na única forma de comunicar que conhecia, o corpo começava a conversar por iniciativa própria, nem que fosse consigo mesmo.

Não sei quanto tempo permaneci naquela porta de escada. Só me lembro que já não havia ninguém nas ruas, as quais se encontravam impossivelmente sujas de papéis e vidros, e a exalar um fedor inimaginável. As amantes dormiam já, inocentes, repousando uma por cima da outra, como dois bebés recém-nascidos agarrando-se no escuro. Saí sem fazer o menor barulho.

Devo ter adormecido na escuridão, porque os relógios electrónicos da rua que encontro assinalam que já passa da meia-noite. Já estamos no terceiro milénio. Mas as ruas continuam as mesmas. As mesmas luzes, as mesmas sombras. Permaneço idêntico, face ao monstruoso significado da Mudança. Indiferente. Sozinho.

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Referências e Textos Relacionados

Autor:
Luís Filipe Silva

Textos:
O Futuro à Janela: Estudo da Obra e da Ficção Científica Portuguesa Actual
Jorge Candeias fala de O Futuro à Janela, de Luís Filipe Silva

Na Web:
O Futuro à Janela (Mediabooks)