Quarta, 18 de Agosto
Nada. Existi?
Sexta, 31 de Dezembro
Véspera de Ano Novo. E de século. E de milénio. Não a mudança do século anunciada pêlos especialistas, bem o sei, mas como convencer milhões de pessoas a não acreditar na magia do ano dois mil, perfeito e redondo? A ruas estão animadas. Paris faz juz ao seu apelido; do espaço é uma fogueira a arder na noite, com os seus milhares de lâmpadas a dançarem sob o cântico do vento. Rios de luz permeiam as árvores, os topos das casas, os intervalos entre fachadas contíguas. Foi pedido aos cidadãos que acendessem um candeeiro ou um foco, ou até uma vela, e os colocassem à janela, às nove horas da noite. Na televisão apareceu à hora marcada a Cidade das Luzes brilhando na atmosfera negra duma Terra na sombra. Era apenas uma mancha branca, quase uniforme. Insignificante. Saber que uma ínfima parte era contribuição minha, na minha janela, a um metro da secretária onde escrevo. Saber que estou ali, e poder apontar-rne de cima. Vigiando-me a mim próprio. Como o meu deus privativo.
A fotografia fazia parte de um programa em que participavam as principais cidades do mundo, as quais tinham feito idêntico pedido aos seus povos. Durante uma hora, vimo-las desfilar enfeitadas para a Grande Passagem. Berlim Unida, Moscovo, Zurique, Roma, Madrid, Lisboa, Nova Iorque (esta quase sobre o terminador)... Nova Iorque. Um daqueles pontinhos negros que de buracos cobrem a luz, é a minha casa. Está vazia. Fechada e escura. Ela foi-se; há muito tempo que uma Ela desapareceu, há tanto que o seu perfume não mais me saúda quando abro a porta; e eu exilei-me temporariamente para escrever. O livro do milénio. O livro sobre o milénio. Unir as pontas soltas do grande mistério e descobrir-lhe um criminoso. Quem, quem? Ainda falta um capítulo, o capítulo deste ano, o ano do fim. Que agora termina.
As ruas estão em maior festa que as televisões. Chegam pela janela fechada as cantorias. Parece Carnaval no Rio de Janeiro, quando o noticiei há dois anos (tanto tempo...). O que é de espantar, pois os Parisienses não saem à rua para cantar desde que a música sabia a liberdade.
Nas ruas, há música e bailado. No meu quarto estou eu. Só eu.
Eu, só.
Não: há outra presença. A presença de algo maior que eu, que cresce de dentro e me envolve. Envolve-me com braços e com um manto de torpor e frio. Sinto a pele intangível do vazio, roçando contra o meu corpo, adornando de beijos o espaço por detrás dos meus olhos. No quarto, só há uma luz, a que aponta para o espaço, na janela, e essa não tem já nenhum significado; o satélite passou e ninguém mais olha para baixo. Para ver a pequena lâmpada à beira de um parapeito, que se perde, por ser tão minúscula, entre as luzes da rua, que são mais coloridas e mais animadas. Ninguém pára, para olhar pela janela aberta, e ver o ser solitário que, de dentro, lhe devolverá a curiosidade; para saber que ele existe.