Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]

Conto

<<

~ La Nausée II ~

Um milénio: mil anos, doze mil meses, trezentos e sessenta e cinco mil duzentos e cinquenta dias, oito milhões setecentos e sessenta e seis mil horas, quinhentos e vinte e cinco milhões e novecentos e sessenta mil minutos, trinta e um mil e quinhentos e cinquenta e sete milhões e seiscentos mil segundos. Ou, contado de um modo mais humano, um milénio equivale a viver vinte e cinco vezes uma vida de quarenta anos - e não se espante o leitor pela brevidade da mesma, pois tem a sorte de viver numa época em que existem condições de higiene e saúde aue permitem longevidades de quase um século, e não numa era que aos trinta anos já se era considerado velho...

Eu desejo a noite.

E a noite abraça-me. Incide sobre a mesa onde a mão descansa. A mão consciente. Não a vejo mas sei que deve estar lá. Ou talvez seja apenas ilusão, sonho. Quem sou eu? A mão retorce-se no leito de papel. Quer libertar-se. Os dedos renegam o domínio do corpo, entrelaçam os seus desígnios, formam uma teia de vectores descontrolados. Vermes a sair da terra. A mão grita. Uma boca abre-se na palma e a língua avança para saborear a folha. Talvez faça uma careta ao sentir a amargura do texto. Todos os meus textos têm o gosto das coisas que já foram.

Outubro de 1582 teve só vinte e um dias. O papa Gregório XIII ordenou por decreto que ao dia 4 sucedesse o dia 15, para acenar com precisão o relógio dos homens pelo da Natureza. Em que limbo estarão os dez dias que ninguém viveu?

Eu sou. Abro os olhos e corro descontroladamente ao longo de uma viela escura, levando na mão o jornal recém-comprado. A menina assassinada pisca-me os olhos frios do cinzento da tinta. Mas quando abro os olhos, desperto para enfrentar o negrume do tecto sem estrelas, e estou deitado. Um nome estranho enche-me a boca. Em breve todo o meu corpo despertará. A rebeldia da mão infiltrou-se já no braço, que me ataca com todas as células e que dispõe, em incisivas fortes, firmes e aguçadas. I have to stop him. (Him?) Tenho de impedi-lo. Obrigá-lo a ficar dormente. É a melhor forma de não sentir. Talvez a mão também pare, e anule a mudança. A outra aguarda, insegura do desenlace, e da própria reacção. Seguro a caneta firmemente, e a caneta corre pelo papel. Não toca na sombra dos dedos repousados. Não toca no suor de gotas de lágrimas da carne. Não toca nos montículos de existência em forma de montanhas de papel de cisne. Afasta-se. Galáxias de fosforescência no espaço das pálpebras. Fecho os olhos. Mordo a mão pingos de sangue o sabor a ferro caem sobre a mancha lívida do papel amargo na palma da mão que vê escrever O milénio terminou acabou a primeira página da nossa história moderna Daqui para diante a responsabilidade é nossa

e todo este tempo, todo todo este tempo, a mão não se moveu.

A Náusea cala-se.

Não há ninguém nas ruas de Paris. Nem a habitual propaganda íntima dos Campos Elísios. Está quente, e as mangas arregaçadas até quase ao ombro dão vazão a uni jorro de suor.

Sou eu.

<<
 

~ Página  7 de  10 ~

>>

Quarta, 18 de Agosto
Nada. Existi?

Sexta, 31 de Dezembro
Véspera de Ano Novo. E de século. E de milénio. Não a mudança do século anunciada pêlos especialistas, bem o sei, mas como convencer milhões de pessoas a não acreditar na magia do ano dois mil, perfeito e redondo? A ruas estão animadas. Paris faz juz ao seu apelido; do espaço é uma fogueira a arder na noite, com os seus milhares de lâmpadas a dançarem sob o cântico do vento. Rios de luz permeiam as árvores, os topos das casas, os intervalos entre fachadas contíguas. Foi pedido aos cidadãos que acendessem um candeeiro ou um foco, ou até uma vela, e os colocassem à janela, às nove horas da noite. Na televisão apareceu à hora marcada a Cidade das Luzes brilhando na atmosfera negra duma Terra na sombra. Era apenas uma mancha branca, quase uniforme. Insignificante. Saber que uma ínfima parte era contribuição minha, na minha janela, a um metro da secretária onde escrevo. Saber que estou ali, e poder apontar-rne de cima. Vigiando-me a mim próprio. Como o meu deus privativo.

A fotografia fazia parte de um programa em que participavam as principais cidades do mundo, as quais tinham feito idêntico pedido aos seus povos. Durante uma hora, vimo-las desfilar enfeitadas para a Grande Passagem. Berlim Unida, Moscovo, Zurique, Roma, Madrid, Lisboa, Nova Iorque (esta quase sobre o terminador)... Nova Iorque. Um daqueles pontinhos negros que de buracos cobrem a luz, é a minha casa. Está vazia. Fechada e escura. Ela foi-se; há muito tempo que uma Ela desapareceu, há tanto que o seu perfume não mais me saúda quando abro a porta; e eu exilei-me temporariamente para escrever. O livro do milénio. O livro sobre o milénio. Unir as pontas soltas do grande mistério e descobrir-lhe um criminoso. Quem, quem? Ainda falta um capítulo, o capítulo deste ano, o ano do fim. Que agora termina.

As ruas estão em maior festa que as televisões. Chegam pela janela fechada as cantorias. Parece Carnaval no Rio de Janeiro, quando o noticiei há dois anos (tanto tempo...). O que é de espantar, pois os Parisienses não saem à rua para cantar desde que a música sabia a liberdade.

Nas ruas, há música e bailado. No meu quarto estou eu. Só eu.

Eu, só.

Não: há outra presença. A presença de algo maior que eu, que cresce de dentro e me envolve. Envolve-me com braços e com um manto de torpor e frio. Sinto a pele intangível do vazio, roçando contra o meu corpo, adornando de beijos o espaço por detrás dos meus olhos. No quarto, só há uma luz, a que aponta para o espaço, na janela, e essa não tem já nenhum significado; o satélite passou e ninguém mais olha para baixo. Para ver a pequena lâmpada à beira de um parapeito, que se perde, por ser tão minúscula, entre as luzes da rua, que são mais coloridas e mais animadas. Ninguém pára, para olhar pela janela aberta, e ver o ser solitário que, de dentro, lhe devolverá a curiosidade; para saber que ele existe.

>>

Folhear
Primeira Página


Página Principal

 

Referências e Textos Relacionados

Autor:
Luís Filipe Silva

Textos:
O Futuro à Janela: Estudo da Obra e da Ficção Científica Portuguesa Actual
Jorge Candeias fala de O Futuro à Janela, de Luís Filipe Silva

Na Web:
O Futuro à Janela (Mediabooks)